Maré Vermelha, 2017 / Tiago Gualberto

O predomínio da cor branca na mostra “Osso. Exposição-apelo do direito de defesa de Rafael Braga” não passou despercebido. Organizada pelo Instituto Tomie Ohtake em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e curada por Paulo Miyada, a mostra recebeu na mídia algumas reportagens nos dias seguintes à sua abertura, realizada no último 27 de junho. Todas elas replicavam informações básicas disponíveis no site da exposição, com exceção de um texto, assinado por Silas Martí. Divulgada pelo Jornal Folha de São Paulo (em 29/06/2017), para o comentarista a cor hegemônica é tomada como sinônimo de presença marcante, afirmação de, como propõe o título da reportagem, um Minimalismo de obras [que] se choca com [a] retórica de protesto de ‘Osso’.

As imagens poéticas relacionadas pelo comentarista da Folha a respeito da brancura ofuscante da exposição (atravessada quase imperceptivelmente pelo piso acinzentado de cimento queimado) vão além: para Martí, a cor associa-se à “obras secas e gestos fortes e invisíveis”. E esse tom se mantém em todo seu texto: o branco como meio de protesto. Um estandarte que, segundo o comentarista, ergue-se pelo braço do “‘dream team’ da arte contemporânea no Brasil”. Também majoritariamente branco, é bem verdade. No entanto, essa a constatação não causa alvoroço, afinal, ela não é velada. Ao menos é o que sugere a colocação de Martí: “Estéril, nua e crua, ‘Osso’ joga luz sobre um abismo que separa negros e brancos, mesmo partindo dos – poucos – negros e muitos brancos que dominam uma indústria cultural calada há tempos demais e que de vez em quando se desperta para reagir à barbárie”. Evidenciando o abismo dos poucos artistas negros e os muitos artistas brancos, o comentarista parece esperar que o leitor o redima por repetir exatamente o padrão do qual faz uso como defesa crítica. Porém, ao tecer seu elogio a estética soberana da exposição, Martí acaba por submeter o “caso Rafael Braga” à uma nova violência.

Negro, pobre, morador da periferia do Rio de Janeiro, Rafael Braga Vieira tornou-se, também, o único preso nas manifestações de junho de 2013. A justificativa de sua detenção (a posse de pinho sol e, supostamente, de 9,3g de cocaína, de 0,6g de maconha e de um rojão) e sua assombrosa sentença (impetrada pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro e fixada em onze anos e três meses de prisão, além do pagamento de 1.687 reais) transtornam. A acusação baseada apenas no depoimento dos policiais e à inviabilidade de uma testemunha ocular que corrobora a declaração de inocência do rapaz ressaltam uma coerção de seu corpo, sua susceptibilidade à pilhagem.

O desprendimento dessa violência parte de um juízo (absolutamente escravocrata) de que o corpo negro, pobre (porque é negro), periférico (porque é negro e pobre) não tem autoridade sobre si mesmo. Antes, está sempre sujeito a ser roubado, destruído, dominado. E, por isso, adverte o jornalista norte-americano Ta-Nehisi Coates, toma lições ao longo da vida sobre como regular sua forma, sua gestualidade; aprende a viver em um corpo negro em meio àqueles que “têm necessidade de ser branco” e que acreditam ser esse “outro” corpo passível de domesticação. Vulnerável, ele não é, todavia, tomado como vida que pode ser designada ao luto, a qual deve-se proteger da morte, da matabilidade.

A revista policial aplicada a Rafael e seu espancamento, que uma testemunha afirma ter presenciado: formas superlativas da destruição de seu corpo. A prisão, a penalidade truculenta a ser paga: a afirmação de que esse corpo não pertence a ele. Assim, efetuam-se sucessivas investidas à sua descorporificação. Rafael, todavia, persiste; nega, pelo direito que tem sobre seu corpo negro.

É sob esses aspectos que retomar as considerações disponíveis até o momento sobre a mostra é um exercício necessário, uma vez que elas colocam em pauta um problema a respeito de uma interpretação bastante comum, presente na exposição. Trata-se da reincidência de um modelo replicado na contemporaneidade, quando se tem em mente produções artísticas e exposições que abordam o corpo negro: a necessidade de se espelhar uma hipotética precariedade do corpo na materialidade e no desenvolvimento de trabalhos de arte. A sucessiva descorporificação de Rafael Braga é transposta para o espaço expositivo, e não se quer com isso uma defesa de uma arte figurativa apegada à verossimilhança (sendo esta a solução estética descartada em Osso).

Embora Martí tome o branco como presença eloquente na dinâmica da exposição, sua sobreposição às paredes também embranquecidas das salas do Instituto Tomie Ohtake evidenciam, na verdade, uma ausência. Se parece que a mostra foge ao esperado por não optar pela exposição de uma violência declarada, mas decidindo pela sutileza, por condimento e silêncio… Bem, o resultado é justamente o inverso. Osso retumba sobre uma noção internalizada de que o trabalho referente ao corpo negro, pobre, periférico, deve ser representado pelo menos. Não se trata aqui de apontar trabalhos individuais direcionados ao caso de Rafael Braga. Sabe-se que poucas das obras reunidas foram elaboradas especificamente para a mostra – e esse aspecto, por isso só, faz irromper uma série de incômodos sobre o lugar desse corpo nessa cena artística específica. A questão, então, se evidencia em relação ao constante movimento político de fragilização do corpo negro, cuja força não pôde se manifestar nem ao mesmo na exposição reservada à sua mostragem.

A brancura, ao invés de presença de cor, cabe muito mais como ausência.

A opção pelo silêncio acaba por emudecer outras possibilidades de aproximação e de apreensão desse corpo específico. Reafirma-se uma fragilidade que lhe é imposta pelo olhar do outro. Alteridade amnésica e cega no que concerne à resistência daqueles que o vêm tão somente como ossos. O mínimo, para além do essencial, do “sem gordura” (termo utilizado pelo curador da mostra em uma reportagem veiculada no jornal El País) pode ter também a acepção de “insignificante”, de “último”, de “inferior”. E é, nesse sentido, que a frase de Martí, sobre “a mudez de uma sociedade diante de abusos contra negros e pobres que seguem um padrão tão regular quanto as formas geométricas do modernismo do país”, representa uma realidade brasileira em constantes representações plásticas do negro, pobre, periférico no circuito artístico. À esse grupo pertencem os trabalhos de fácil transporte, de materiais outrossim pobres, baratos, dos quais (e somente esses quais) o próprio “personagem tema” pode lançar mão para realizar “alguma coisa”. Tens em mãos somente pinho sol!

Assim, se o abismo aparece em Osso, não é pela sua dissolução, mas por uma massacrante reafirmação. A narrativa, se ela é presente na exposição, não se volta apenas ao caso específico de Rafael Braga, mas discorre sobre como sua condição é replicada: seu corpo, mesmo se o fora forte antes da prisão, resistente, ainda assim retumba. Ou melhor: é derrubado.

Nesse sentido, cabe receber como contraponto o trabalho de Tiago Gualberto. Nele, o corpo desfoca, porém é retomado; cambaleia, contudo, perdura. O movimento da ginga, tido como manha (que só o contexto dirá se tratar de adjetivações positivas ou negativas) é o gesto da resistência. “Esse moço tem ginga”, afinal, ele sabe bem como, a despeito daqueles que preferem perceber seu corpo como frágil (sempre susceptível à uma pilhagem dos corpos), subsistir.

Maré vermelha explicita isso começando por seu título. Afinal, apesar da demanda de certos temas, no mundo das artes contemporâneas muitas vezes o que se tem é a intenção de cumprir um calendário. Nisso, é preciso também resistir para permanecer. E essa permanência não é pequena. Compostos por seis monitores verticais postos em duas fileiras, o vídeo alcança seus três metros de altura. Totêmico. É possível ficar indiferente? O trabalho está instalado na segunda sala da exposição e, logo que o visitante deixa o primeiro espaço e vira a esquina, ali está ao fundo aquela imagem, aquele corpo. De branco, não há. Envolto em luz – laranja, vermelha, rosa? a predominância de cada uma dessas cores em um monitor, a passagem de uma cor à outra no decorrer do vídeo? a percepção de que as cores se alteram no movimento do observador pela sala de exibição? o rebatimento da cor-luz no chão de cimento queimado? – não é possível que aquele corpo de costas e que, por vezes, desdobra-se em duas cabeças, passe desapercebido.

Cabe recordar quando, em 2010, Mo’Nique recebeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante por sua atuação em Preciosa e seu agradecimento ao prêmio se deu pelo fato de que aquele era o reconhecimento de sua “performance e não da política”. Era ali também o momento em que um corpo negro estava na frente daqueles que facilmente – pois constantemente – podiam limar a potência de sua performance estética e política, de sua presença. Rafael Braga também não o permite. Sua imagem de bode expiatório, aplicada pela polícia e pelo juiz de modo arbitrário, parece ser apropriada da mesma forma por uma branquidão ofuscante que maneja seu corpo muitas vezes interessada em provar, não de Rafael, mas a própria inocência.

Ah, condição ardilosa. Pretende esquecer que os métodos de coerção do Estado se organizam a partir de um horizonte ontológico, dirá Judith Butler, que precede e excede o poder estatal. Por isso, a resistência o sobrepuja.

É preciso entrincheirar-se em muitos campos.

Assim, se o tráfego entre periferia e centro se fará em debates que levará gente periférica a ter voz no Tomie Ohtake, à imagem de uma democratização do campo das artes visuais contemporâneas, trabalhos como Maré Vermelha se erguem para manter tal lugar. Construído em cor, reproduzido em looping, presente.

Autoria

André Pitol é graduado em Artes Visuais e mestre em História, Teoria e Crítica de Arte, ambos pela ECA-USP. Desenvolveu extensa investigação histórica e artística sobre a produção fotográfica de Alair Gomes. Desenvolve trabalhos com catalogação, pesquisa e projetos gráficos editoriais.

Vivian Braga dos Santos é doutoranda e mestre em História, Teoria e Crítica de Arte pela ECA-USP, bacharel e licenciada em Artes Visuais pela UNICAMP. Estudou História da Arte na Université Paris X – Nanterre. Desenvolve pesquisa sobre relações entre práticas artísticas contemporâneas, conflitos políticos e história.
Ambos são integrantes do grupo de pesquisa EntreArtes Contemporâneas.