Durante a Missão NINJA em Brumadinho, conversamos com Carolina Morishita e Henrique Belo, da Defensoria Pública de Minas Gerais. Eles contam o trabalho desenvolvido na região e o cenário que encontraram.

Atingidos pelo crime da Vale em Brumadinho fazem cadastro para pedido de indenização. Foto: Mídia NINJA

Segundo relatos de moradores da região, a Vale tem atuado diretamente em todas as áreas, seja da saúde à defesa civil, o que causa uma enorme insegurança nos atingidos pela própria empresa. Nesse momento, o papel do órgão estatal ganha mais força e mostra profissionais mais sensíveis com as principais demandas da população. Carolina faz parte do Núcleo Estratégico para Proteção de Vulneráveis em Situação de Crise e também atuou e atua com os atingidos do caso de Mariana, experiência que dizem ter sido um grande aprendizado, pois agora já se conhece muitas das estratégias da empresa e as pessoas estão mais conscientes dos seus direitos.

Confira os principais trechos da entrevista:

MOBILIZAÇÃO POPULAR

Eu fiquei impressionada em Córrego Feijão porque desde o começo, nesse momento mais difícil, as comunidades já estão mobilizadas para se ajudar, para garantir que todos eles estão tendo acesso às mesmas informações e tendo seus direitos respeitados. Isso é fundamental.

Nem a defensoria pública nem as outras instituições envolvidas têm o papel de falar o que é bom ou o que é necessário para cada um, a gente orienta, a gente acompanha mas estamos junto com a comunidade, quem toma as decisões são eles, o modo de vida deles que foi afetado.

DIREITOS

O primeiro direito e o direito que tem que ser respeitado ao máximo nesse momento é a informação. A informação não é qualquer uma, ela tem que ser clara, objetiva, segura e tempestiva, que vem no tempo certo. Esse é o primeiro direito porque a partir daí a pessoa vai avaliar as opções dela.

É claro que as pessoas têm o direito à moradia – e que seja uma moradia condizente com a vontade dela – têm o direito a uma alimentação adequada – muita gente está sem cozinha e precisa ter comida, mas não pode ser qualquer comida, tem que ser uma comida a que ela esteja habituada, que seja boa pra ela, não pode ser qualquer comida. Quem teve entes perdidos tem direito à assistência funerária, ao apoio psicológico e psiquiátrico se necessário, além do atendimento médico geral.

As pessoas terão direito à indenização de tudo que aconteceu com elas, mas para alguns não é o momento da indenização ainda porque a gente precisa que as pessoas estejam bem para tomarem as decisões.

Uma pessoa que não tá bem emocionalmente não tem condições de buscar todos os seus direitos. Tem gente que foi atingida porque perdeu a casa, perdeu um familiar, vai perder o emprego, porque a água não é segura… são muitas formas de ser atingidos e por isso é importante

O IMPACTO MENTAL

A dinâmica de receber as listas é muito complicada, imagine o que é achar o nome de um ente querido quando você ainda tá em pânico, é muito difícil. Por isso, a gente tentou estabelecer de início um fluxo de informação com a Vale para fazer repasses seguros pra quem está aqui, pra passar algo que fosse verdadeiro, seguro e não causasse um distúrbio emocional além do que já estavam passando.

Familiares buscam nomes de entes queridos nas listas disponibilizadas pela Vale. Foto: Mídia NINJA

O adoecimento mental já está presente e ele vai continuar. O estresse na comunidade é muito grande, eles ainda estão em choque. Quando acabar essa etapa inicial de localização dos desaparecidos e dos enterros que são muito tristes, pelo número de pessoas e pela forma como são realizados, começa o outro choque que é o de retirada da lama. Vão começar a aparecer novos atores que eles não conhecem e isso traz um novo distúrbio pra comunidade também. Causa uma insegurança, porque toda hora vai aparecer uma pessoa que você nunca viu, isso tira a tranquilidade deles. Afeta a saúde mental, que ainda não vai ter sido recuperada por completo, portanto há uma permanência do incômodo.

O TRAUMA E A REPARAÇÃO

A gente que trabalha ficou abaladíssimo, imagina quem mora aqui e perdeu alguém. Imagina o futuro disso, daqui um ano, dois anos, cinco anos… pense nas crianças, uma que perdeu um pai, que viu uma lama devastando tudo imagina você com 5, 6 anos e presenciando tudo isso.

Já ouvi relatos de filhos de atingidos que perguntam o que está acontecendo. Alguns deles não sabem. São pessoas muito evoluídas no trato, na sensibilidade, mas isso ao mesmo tempo dá um efeito inverso. O sofrimento é proporcional à humildade e a espiritualidade dessas pessoas, eles sofrem mais que a gente.

É diferente de quem vive em cidade grande, está acostumada com barulho, poluição, com passar e ver uma pessoa na rua. Eles não, eles vivem em tranquilidade cotidiana que um trauma desses é muito forte.

Muita gente foi retirada das comunidades e levadas para hoteis em Belo Horizonte e a gente ouve relatos como “eu nunca dormi com barulho de carro, não estou conseguindo descansar”. Reclamam da comida do hotel, que não é necessariamente ruim, mas não é a que eles estão habituados, isso impacta nas pessoas.

Depois disso tudo, também é preciso ver o processo de reassentamento. As pessoas precisam ter casas que elas considerem apropriadas para elas mesmas. Não importa a gente achar que a casa é bonita, boa, excelente, se a pessoa não se sente bem. Muitas vezes eles não querem luxo, eles querem a casa deles.

Por isso tudo, é muito importante ouvir a comunidade. Não apenas apresentar soluções prontas, mas construir com eles

O PAPEL DA DEFENSORIA

Carolina Morishita, da Defensora Pública de Minas Gerais, durante atendimentos em Córrego Feijão. Foto: Mídia NINJA

O papel da defensoria é criar um canal entre as pessoas que estão vivendo esses problemas e a Vale para que a gente consiga resolver de fato todas as situações geradas. O nosso papel é garantir que as pessoas tenham a demanda acompanhada e o direito atendido. Estamos fazendo isso em conjunto com Ministério Público Federal, o Ministério Público de Minas Gerais, a Defensoria de Minas e a Defensoria da União.

A gente não está falando só de reparação, mas de reparação integral.

A gente quer que todos os direitos sejam entendidos, todos os danos conhecidos de forma adequada, e infelizmente sobre alguns danos precisam de tempo porque não podemos ir numa velocidade que não seja condizente com o direito da pessoa e prejudique a saúde mental das pessoas.

AS RESPONSABILIDADES DA VALE

Eu não tenho dúvida de que a responsabilidade da empresa causadora do dano é prover assistência integral, mas elas não podem substituir o Estado. Até porque, em alguns momentos, com as pessoas em choque ainda, muitos não sentem confiança de serem atendidos por alguém que foi contratado pela Vale, por isso o Estado é um ótimo caminho pra elas terem atendimento médico, casas que podem ter sido abaladas podem ser vistoriadas pela Defesa Civil, além de outros atendimentos e do Ministério Público que também está atuando no caso. Esse aumento de gastos do Estado para o atendimento emergencial será custeado pela Vale, o importante é as pessoas serem bem atendidas e com segurança. A Vale não é o Estado.