Criador do Movimento Slow Food, Carlo Petrini aposta na agricultura familiar e em comunidade para impulsionar alimentação saudável.

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“Por que estão destruindo a agricultura familiar no Brasil? Aqui a fome está voltando, e você vem me falar da exportação? Antes da exportação, necessitamos que o brasileiro coma bem!”, fala o bem humorado Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, organização internacional que se contrapõe ao fast food.

Petrini conversou com a Mídia NINJA no evento Fruto | Diálogos do Alimento, em São Paulo. Em sua palestra, o ativista alimentar defendeu que a mudança na forma como se produz e se consome alimentos só pode ser feita com as palavras comunidade, aliança e alegria, através de uma política de autonomia e construção de base.

O Slow Food produz a Arca do Gosto, catálogo que investiga e registra culturas alimentares de diversas regiões do mundo. Criado em 1996, são mais de 4.000 produtos alimentares catalogados até hoje, em 140 países.  Confira os principais trechos dessa conversa:

Consumo de carne e desperdício

Hoje no mundo se produz comida para 12 bilhões de pessoas. Nós somos 7 bilhões e 300 milhões. 38% da produção é desperdiçada. 38%! Todos falam que devido ao aumento da população precisamos de uma produção maior. Esse é um paradigma errado. O campo de trabalho é na redução do desperdício. Se aumentarmos a produção com estes 38% de desperdício, a coisa fica insustentável.

Necessitamos de uma nova cultura de luta contra o desperdício. Essa é uma luta de todos, não só da política, é também dos cidadãos. É um desastre e esse é o desafio máximo. Eu estou convencido disso.

A ONU estima que em 2.050 a população mundial será de 9 bilhões de pessoas. Se produzimos para 12 bilhões, é uma loucura pensar que precisamos de mais.

Em particular, o consumo das carnes é alarmante. Na Itália se consome 100 kg de carne para cada italiano, nos EUA, 125 kg. Se todo mundo comer essa quantidade de carne, precisaríamos de 3 planetas. Hoje, a maior parte da terra serve para produzir comida para os animais que comemos. Por isso, é fundamental diminuir o consumo de carne.

Mas, como pedir para um africano, que consome 5 quilos de carne por ano, para diminuir o consumo? Nesse sentido, precisamos fazer convergir a necessidade de norteamericanos, italianos e europeus consumirem menos, e os africanos mais.

Ao mesmo tempo, esse consumo produz enfermidades enormes. Em outubro de 2016, a OMS disse que o consumo de carne é um dos maiores responsáveis pelo câncer. Ninguém fala disso. Ninguém. Vivemos em um mundo que necessita de mais responsabilidade e informação.

Educação alimentar e agricultura familiar

Nós temos um problema que é a educação. Não há educação alimentar na escola. Na sociedade camponesa, a consciência e educação se transmitia de mãe para para filha ou de pai para filho, era direta. Agora, na sociedade industrial e pós-industrial, o cordão umbilical da sabedoria foi cortado.

O primeiro passo é ter uma nova formação alimentar na escola, que tenha impacto nos pequenos cidadãos. O segundo é ter informação, porque sem informação não se tem transformação. A criança vai manter uma dimensão de “pornografia alimentar”. É preciso ter informação de receitas, tratabilidade de produtos, se perguntar “de onde vem esse produto?”.

Na Itália, todos os dias são produzidas toneladas de tomate enlatado. O tomate enlatado tem um nome italiano tino. O tino é enviado para o africano. Como os seus preços são extremamente baixos, o africano não pode produzir seus tomates, pois teria uma custo bem maior para sua comunidade. Isso chama-se dumping.

A força desse momento é que o jovem carrega essa bandeira mais do que a minha geração. A minha geração é um desastre, porque acha que sabe de tudo. Hoje o jovem questiona sobre a tratabilidade e quanto se paga pelos produtos aos camponeses.

Em um momento como esse, por que estão destruindo a agricultura familiar no Brasil? eu não me encanto em ver que o agronegócio vai bem, no Brasil a fome está voltando, e você vem me fala da exportação? Antes da exportação, necessitamos que o brasileiro coma bem!

Combate ao desperdício e valor do alimento

Conhecer a tratabilidade e o sistema produtivo é fundamental para combater o desperdício. Se você não sabe sobre tratabilidade e cultura produtiva não pode combater o desperdício. Ao mesmo tempo, está loucura incrível que é o desperdício se difere muito.

Por exemplo, na África há desperdício porque falta a infraestrutura. Em muitos lugares não há refrigeração, você produz a comida num povo e ela não chega na cidade. Essa é uma forma de desperdício. Em outras situações, há desperdício pela diferença de preço e valor real dos alimentos. Nos últimos 50 anos a comida perdeu valor.

Se você fala qual é o valor desta comida? O preço sempre vai ser mais barato. E nesse momento vemos a coisa mais incrível: de um lado os pequenos produtores orgânicos, que não ganham muito mal e produzem para os ricos, que gostam de comer orgânicos, e de outro as grandes empresas, que ganham muito e produzem para os pobres.

Todos trabalham sempre pelo preço mais baixo, e isso significa a morte para o pequeno produtor. Esse é um processo fundamental. Onde está a política nisso? Há desperdício porque na comida não há valor. O que falar sobre isso se não há políticas públicas efetivas? Por isso, é importante criamos uma aliança entre nós e construirmos da base a mudança.

Arca do gosto, cultura e mercado local

Arca do gosto é nossa história, natureza e a forma que encontramos para promover a agricultura de base e de apoio aos camponeses. A Arca do gosto é uma forma de denominação cultural, por isso defendemos uma produção que dê suporte aos camponeses. Isso não é uma coisa da nostalgia ou velha, ao contrário, isso é que é realmente moderno.

Muita gente pensa que a modernidade é a comida enlatada que comemos, mas a modernidade não é isso, modernidade é recomeçar a nossa relação com o campo. Isso é modernidade.

Precisamos fortalecer os produtos verdadeiros, que se não houver um trabalho forte, vão desaparecer. A biodiversidade vai desaparecer, e toda a comida será ruim. A biodiversidade daqui é maravilhosa, perdê-la será destruir a história. Eu não falo de comida por comida, eu falo de história, sociedade e respeito as pessoas humildes.

Como construir mercados locais e comunidades?

Essas realidade não tem futuro se não se criarmos alianças.

Primeiro, os cozinheiros precisam cozinhar com produtos locais e dar valor à comida. Isso é a coisa mais importante. A aliança entre os cozinheiros e os camponeses.

Segundo, construir uma rede de cidadãos coprodutores que se ajudem de uma forma distributiva nova e forte, que significa mercado de camponeses, em que, antes de ser orgânico, deve ser local. No meu país, tem produtos orgânicos que chegam do Chile. Isso está errado. Eu prefiro um produto local a um que precisou atravessar continentes. Essa é uma coisa incrível, comer e ajudar a economia local.

Terceiro, construir suportes para a agricultura familiar. Isso significa que grupos de cidadãos investem nas produções dos camponeses antecipadamente, os camponeses, quando colherem, entregam esse produto. Dessa maneira, os cidadãos não põem dinheiro no banco, colocam num banco muito mais produtivo, que é dos camponeses. Os camponeses tem afetividade e amor pelos seus produtos e dão produtos frescos e saudáveis para os cidadãos. Ao mesmo tempo, os camponeses também não vão precisar do dinheiro dos bancos.

Isso não é uma utopia, isso se realizou nos EUA. Os EUA neste momento tem muitos mercados camponeses e community supporter. A política que promoveu essa ideia está personificada no Bernie Sanders. Todo mundo fala dele, mas ninguém sabe que ele também é Slow Food, porque realizou em seu país um dos primeiros mercados de camponeses. Os jovens gostam dele justamente por essa filosofia. Na Europa e aqui, infelizmente regressamos à Nestlê.

A segurança afetiva é muito importante se você quer realizar um desafio por outras pessoas. Tem que ser afetivamente entregue. Isso é comunidade. O futuro é construir comunidades em que um desafio forte é a seguridade afetiva. Isso é uma força enorme, que na política não existe mais, pois muitas vezes nos mesmos partidos só há contraposição, não há construção.

A melhor escola para isso são os indígenas, porque eles são uma comunidade. Os indígenas têm uma realidade com uma visão muito próxima da natureza, e precisamos escutar suas vozes.

Eu estava no Acre, em Rio Branco, e compreendi uma coisa: todo mundo fala de defender os índios de uma forma paternal, como coitados, e não compreendem que o verdadeira respeito à floresta vem dos índios. São os índios que mantêm a Floresta Amazônica. Se perdemos eles, perdemos a floresta.

Os índios não precisam de filantropia, precisam ser reconhecidos por seu trabalho de defesa a natureza. A verdade é que a floresta nesse país tem nos índios sua parte mais responsável. Foi isso que compreendeu muito bem Chico Mentes e, agora, fazem 30 anos que ele morreu, assassinado. Essa é uma reflexão muito importante.