Para o Mês da Marcha da Maconha e dos 130 anos da Falsa Abolição do regime escravocrata do Brasil, a Mídia Ninja entrevistou a militante Juliana Moreira, formada em Psicologia e membra do coletivo DAR.

Foto: Mídia NINJA

Entrevista: Isabela Alves e Jéssica Lopes

O tráfico de drogas é uma das formas do Estado Brasileiro de garantir o genocídio da população negra, além de lucrar com a venda ilícita. A abolição da escravidão, bem como suas consequências, foi outra forma encontrada pelo Estado para marginalizar os escravos e seus descendentes.

Hoje, achamos que o processo da abolição foi feito pela Princesa Isabel, entretanto já está mais que evidente que muitos negros e negras lutaram pela libertação. Assim, também pensamos que a luta pela legalização da maconha vem de uma esquerda branca, anulando de fato os negros e negras que estão nas ruas falando sobre isso. Confira a entrevista:

MN – A política antidrogas afeta o cidadão?
Juliana: As políticas sobre drogas afetam todas as pessoas em menor ou maior escala, ao meu ver, seja porque interferem em seu direito de escolha sobre o que fazer com seu próprio corpo, o que é totalmente arbitrário, seja porque, a pretexto de combater as drogas, invadem casas, violam corpos, ameaçam e matam.

As políticas que temos hoje, mesmo as que não são de segurança pública, não são pensadas a partir dos importantes recortes de gênero, raça e classe.

Foto: Mídia NINJA

MN – Como o DAR apoia e acompanha os usuários?
Juliana: O DAR tem atuado sempre na via informativa: produzindo material relativo ao tema no site e página do FB, organizando atividades formativas, colando nas escolas, penitenciárias, quebradas e onde mais a galera chamar a gente pra fazer atividades com todos os gêneros e idades.

Já falamos com crianças, adolescentes, adultos, polícia, professoras, profissionais de medida socioeducativa, entre outras. Fora isso, a gente soma em atividades com parceiras e parceiros, como a Pastoral Carcerária, Craco Resiste, É de Lei e onde mais nossas pernas conseguem.

MN – Falar sobre drogas hoje sendo mulher, negra e periférica em ambientes masculinizados gera conflito?
Juliana: Sempre. Ser mulher preta e periférica já são os ingredientes pra treta. Quando entrei no coletivo eu era a única pessoa preta no rolê, escrevi recentemente, com uma amiga, um texto sobre isso que publicamos no 8M.

Dentro da militância, de maneira geral, as pessoas não brancas e não de classe média ainda não são uma presença tão demarcada, é um espaço que eu sinto que está sendo conquistado ainda.

A militância antiproibicionista é majoritariamente masculina também, tal como tudo que diz respeito às drogas, esse é um espaço socialmente reservado para homens. Então, sim, sempre ocorrem conflitos, sejam políticos, ideológicos, de gênero e de classe.

MN – O que as Marchas da Maconha, tanto as regionais como as centrais, representam hoje para a sociedade?
Juliana: Acredito que a maior função da Marcha é ser essa desobediência civil organizada toda. Acho que a Marcha representa muito politicamente por ser uma manifestação desobediente que só tem crescido e que tem conseguido se espalhar pelos quatro cantos da cidade, algo que não vemos acontecer muito no momento político que vivemos, principalmente na esquerda.

Outra coisa que a Marcha de São Paulo tem conseguido realizar é alcançar as pessoas e promover um debate que vai além de um centro branco de classe média.

A marcha tem conseguido a cada ano chegar mais nas periferias e as periferias têm chegado na marcha, ou seja, o debate sobre a guerra às drogas, que mata e prende mesmo é na periferia, tem sido feito lá, onde a porca torce o rabo de verdade, os mortos da guerra às drogas tem voz, as grandes vítimas dessa guerra podem falar por si na Marcha da Maconha, ninguém fala por elas.

A adesão das pessoas mostra que a Marcha não é vista como uma alienação, uma pauta burguesa ou uma viagem, as pessoas se identificam e somam para construir essa legalização de baixo pra cima.

Foto: Mídia NINJA

MN – Como mulher negra, o que você acha sobre a Abolição?
Juliana: Eu aprendi sobre abolição na escola, então por muito tempo achei que a princesa Isabel tinha me salvado (risos de desespero). Meu processo de me entender mulher preta começou tarde e eu ainda estou aprendendo e crescendo sempre.

Vejo hoje que a abolição nunca aconteceu aqui. Ao mesmo tempo em que foram criados dispositivos para uma suposta libertação dos escravos, outros foram implementados para garantir a perene marginalização, prisão e morte dessas pessoas. O processo de abolição não era composto por políticas que promovessem a ascensão das pessoas pretas na sociedade, e sim o contrário, garantindo a marginalização dos escravos recém “libertos”.

MN – Os Movimentos sociais hoje estão passando por uma visibilidade negativa. O que esses movimentos representam para os cidadãos com menos recursos?
Juliana: Acho que quando afirmamos isso a gente tá muito focado no centro. Na quebrada a militância é diferente. Não to dizendo que tá tudo mil maravilhas, realmente as pessoas estão desacreditadas de maneira geral. Mas tenho contato com movimentos sociais da periferia, principalmente de mulheres, que tem tido adesão e apoio das comunidades porque lutam por pautas reais e urgentes, em frentes importantes e que fazem realmente a diferença na vida das pessoas.

O que eu vejo que está perdendo a popularidade é essa esquerda acadêmica “fala muito” que fica só organizando evento e mesa de debate, ato ato ato e que não dá conta de, ao menos, dar espaço de fala pra quem realmente tem o que dizer.

Perde tempo defendendo candidato x e y que não representam e não correm junto com a quebrada. Na real fico feliz que as pessoas estejam desacreditando desse tipo de rolê mesmo.

Foto: Mídia NINJA

MN – Como você acha que o movimento negro pode se organizar para causar mais impacto social? Para você a síndrome de Princesa Isabel (mulheres brancas que acham que estão ajudando os negros) é importante hoje?
Juliana: Eu sou uma mulher preta, mas também devido ao meu processo pessoal, não faço parte de movimento negro e não me sinto à vontade pra dizer o que o movimento deve ou não fazer.

Sobre a síndrome, acho que gente branca querendo salvar nóis tá cheio sempre, branquitude também é isso aí: uma galera branca cheia de boa intenção que “nem percebe” que está sendo racista querendo ser progressista.

A gente combate isso de muitas formas, todas elas tem a ver com a nossa imposição de nós mesmos nos espaços e debates, tem a ver com a gente se conhecer e saber nossa história que foi roubada e alterada desde sempre, tem a ver com a gente correr por nós e não ficar esperando nada desses branco aí, nem de governo, nem de patrão, nem de ninguém. A revolução é preta e feminista e é de baixo pra cima.

Marcha da Maconha 2016. Foto: Mídia NINJA

MN – Qual sua opinião sobre a crescente visibilidade das favelas em novelas, clipes e festas?
Juliana: É bom, mas é ruim haha. Acho que a gente tá dentro do sistema e a gente vive sendo pego por ele, é nossa realidade diária. É importante a visibilidade, ela abre muitas possibilidades e várias são boas, ao mesmo tempo a gente pensa “é na globo mesmo que eu quero me ver?”.

Sei lá, não vou tentar ter resposta pra isso, porque é muito complicado. Sigo acreditando que temos que chegar longe, quando a gente chegar lá a gente vê o que faz, tentar não esquecer de onde a gente saiu e seguir em frente fiel ao que acreditamos e defendemos, com todas as contradições que existem nesse caminho.

MN: Qual sua cor favorita ? 
Juliana: É roxo! Que bom que você perguntou.