Na Argentina as pessoas conhecem os horrores da ditadura, mesmo os que não a viveram, ou não foram diretamente atingidos por ela, aqui a ditadura segue trancafiada nos porões que a tantos reprimiu enquanto seus artificies seguem pelas ruas.

Madre de Plaza de Mayo e filha reivindicando a aparição com vida de um dos mais de 30 mil desaparecidos da ditadura argentina. Foto: Adriana Lestido

Na última semana de julho, a justiça argentina deu mais uma demonstração exemplar de responsabilização dos promotores do terrorismo de Estado durante a ditadura militar (1976-1983). Por meio da condenação de quatro juízes que acobertaram dezenas de sequestros, torturas e assassinatos, inovaram ao levar ao banco dos réus civis que foram considerados colaboradores primários de crimes de lesa humanidade. A sentença, que apontou uma conduta sistemática do Poder Judicial, já tem sido considerada em âmbito internacional como de tal envergadura que só poderia ser comparada com os julgamentos realizados na Alemanha após a derrocada do nazismo.

Na Argentina, contudo, a realidade e suas consequências são bastante diferentes. Afetados pela mesma “Operação Condor” que perseguiu e vitimou pessoas em todo o Cone Sul, no Brasil vemos responsáveis por crimes atrozes levarem uma vida sem sobressaltos.

Em 2010 o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) por não punir os responsáveis pelo desaparecimento de 62 pessoas entre 1972 e 1974 na região do Araguaia. A sentença é nítida: determina a investigação penal dos casos de desaparecimento e conclui que a Lei da Anistia, de agosto de 1979, é incompatível com a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. Apesar de sentenciar o Brasil e apontar que a referida legislação é um obstáculo à investigação e sanção de graves violações de direitos humanos, a Corte segue sem resposta, pois há sete anos o Poder Judiciário brasileiro ignora solenemente sua determinação.

Para além da condenação, que já deveria ser motivo suficiente para a revisão de uma legislação injusta e que impede nosso reencontro com a nossa história, outros elementos fazem com esta mudança seja não apenas necessária como cada vez mais atual.

No Brasil, de um lado temos forças de segurança que mantém práticas aprendidas na ditadura e mantidas na democracia, e de outro uma população que ao não ter o seu direito à memória e à verdade assegurados, cada vez mais flerta com o autoritarismo. Os dados são flagrantes dessa realidade.

Segundo o relatório da Anistia Internacional a força policial brasileira é a que mais mata no mundo. Ainda segundo o relatório é prática corrente que os policiais atirem em pessoas que já se renderam, que já estão feridas ou sem fazer qualquer advertência que pudesse permitir que o suspeito viesse a se entregar. Práticas que tem em sua raiz a lógica do inimigo interno e não visa assegurar a segurança e o cumprimento da lei, e sim a eliminação do outro, resquício autoritário.

Têm consequências também para os policiais, que são os que mais matam e também estão entre os que mais morrem no mundo, ele também é visto como inimigo dentro das favelas e nas periferias, provavelmente também não receberá socorro se precisar, e será eliminado caso a oportunidade se manifeste, lógica triste e perversa.

Chama atenção ainda que, segundo o relatório do Latinobarômetro, organização que mede o pessimismo com a democracia em 18 países, o Brasil ocupe o segundo lugar no ranking. À frente apenas da Guatemala, em nosso país somente 32% dos brasileiros e das brasileiras concordam com a afirmação de que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. Ainda que a crise política e os contínuos escândalos de corrupção possam explicar parte da insatisfação não trazem resposta para tudo. Mais uma vez a comparação com os “hermanos” pode nos auxiliar.

Em 2001, a Argentina vivia a pior crise econômica da sua história recente, e uma onda de protestos que acabou com 38 mortos nas ruas e cinco presidentes em duas semanas. Foi neste ano também que este país chegou a sua mais baixa média de apoio a democracia, mas mesmo em meio a uma ebulição de grandes proporções o apoio dos argentinos à democracia nunca chegou abaixo dos 50%. O que nos diferenciaria então?

Lá as pessoas conhecem os horrores da ditadura, mesmo os que não a viveram, ou não foram diretamente atingidos por ela, aqui a ditadura segue trancafiada nos porões que a tantos reprimiu enquanto seus artificies seguem pelas ruas.

O crescimento do fascismo nas ruas, nas redes, e nas urnas, também não é uma questão menor, combinado ao descrédito da classe política que, via de regra, leva ao crescimento da abstenção, pode alçar a postos de cada vez maior destaque, figuras que professem o ódio, a intolerância e ameassem pressupostos básicos da democracia.

Em meio as polêmicas que envolveram a indicação de Raquel Dodge para substituir Rodrigo Janot na Procuradoria-Geral da República alguns aspectos passaram quase despercebidos. Em sua sabatina no Senado Raquel Dodge defendeu a revisão da Lei da Anistia, maior rigidez no controle de armas e que o fim do registro dos chamados “autos de resistência” em boletins de ocorrência comum.

Posicionamentos afirmativos que, em tempos sombrios como os que vivemos, não significam pouco e que, somadas a outras ações podem contribuir para que o Supremo Tribunal Federal volte a se debruçar sobre o tema e declare que a Lei da Anistia não se aplica aos crimes de graves lesões a direitos humanos, como entendeu a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Já passamos da hora.

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