Os tempos sombrios que vivemos não podem nos impedir de continuar a pensar e agir sobre a democracia que vínhamos construindo e a que queremos construir.

Foto: Mídia NINJA

“Tempos sombrios”, como lembra Hanna Arendt, não são raros na história. Logo, o exercício de resgate do passado e a projeção de futuro é bastante salutar para lançarmos luzes no presente.

No nosso caso, golpes como o de 2016 já ocorreram antes e devem nos servir de aprendizado. Após a queda de João Goulart em 1964, também com conivência do judiciário, diversas pessoas nutriam a expectativa de que a democracia voltaria brevemente. Era impensável, então, que os militares pudessem permanecer no poder por tanto tempo. O que se viu, contudo, foi o aprofundamento do golpe e do autoritarismo, algo tão bem representado no Ato Institucional número 5, de 1968, que em seus artigos “autorizou” a Ditadura a suspender direitos políticos, cassar mandatários eleitos e abolir o habeas corpus. A “breve” suspensão democrática durou vinte longos anos.

O golpe que afastou Dilma Rousseff, primeira mulher a alcançar a presidência na nossa história, rompeu a ordem democrática em nome de uma promessa de salvação econômica que se mostra cada vez mais falsa e distante.

Com um governo ilegítimo, um legislativo desmoralizado e um judiciário que busca holofotes, a política é esculachada e aprofunda-se a crise institucional.

Neste quadro difícil, temos de ter a certeza de que a mera realização de uma nova eleição, como a que está prevista para 2018, pode não ser suficiente para que a prática democrática se restabeleça no país.

Diante do imenso favoritismo de Lula em todas as pesquisas e do retumbante sucesso de sua caravana pelo Nordeste brasileiro, cabe pensar: será mesmo que teremos a possibilidade de restabelecer a democracia brasileira votando para presidente em 2018? A recente condenação de Lula por um juiz parcial, a qual pode impedi-lo de se candidatar, é um fortíssimo indício de que não.

Em meio a isso, o Congresso Nacional, o mesmo que cassou de forma vulgar e misógina o mandato da presidenta Dilma Rousseff, promove uma pretensa reforma política. Temos denunciado, inclusive nesta coluna no Mídia Ninja, as razões para tanto: a autopreservação dos que lá estão. As discussões pela instituição do chamado distritão, bem como a forma como planejam instituir o fundo eleitoral, demonstram que não há a menor preocupação com o restabelecimento da democracia, muito menos de recuperar a credibilidade junto à sociedade.

Lembremos que em 2015, quando o Congresso também se debruçou sobre a reforma eleitoral, o voto majoritário (distritão) foi rejeitado pela Câmara. Neste mesmo ano, a criação de cotas para mulheres também foi rejeitada, apesar da mobilização da bancada feminina e da pressão dos movimentos feministas.

Nesta pretensa reforma política em andamento, o aumento da participação das mulheres não tem destaque. Não nos espanta, uma vez que se trata de uma casa predominante de homens, velhos e ricos. Na Câmara dos Deputados, somos 10% do total, enquanto a média mundial é de 23%.

Mas pouco lhes importa que o Brasil seja um dos países com mais baixa participação feminina na política. Tão criticados pela mídia convencional, Bolívia e Cuba nos dão uma senhora lição: lá o número de deputadas chega a 53 e 49%, respectivamente. Comprova-se, assim, o quão limitada é a compreensão do conceito de democracia pelos senhores legisladores.

Mas precisamos ver luz nas trevas. No último dia 15, o STJ confirmou a condenação de Jair Bolsonaro por danos morais contra a deputada Maria do Rosário. O parlamentar disse publicamente que não estupraria a deputada porque ela não merecia. Posteriormente, ainda completou que não o faria, pois ela era muito feia. Além da brilhante sustentação oral feita pela advogada Camila Gomes, o voto da ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, decidindo a favor de Rosário, foi magistral, uma verdadeira aula sobre imunidade parlamentar. Ao contrário do que a defesa do réu alega, tal imunidade não pode ser usada como cheque em branco.

A vitória de Rosário deve ser comemorada por todas as mulheres brasileiras; contribui para que não abandonemos nossa luta. A teimosia das mulheres fez com que chegássemos até aqui: com a Lei Maria da Penha, Lei do Feminicídio, regulamentação do trabalho doméstico, titularidade em programas sociais.

São pequenos feixes de luz nessa nossa sociedade tradicionalmente patriarcal, que ainda mantém taxas de violência altas, diferença salarial, baixa representatividade política e o machismo expresso nas vozes de alguns parlamentares.

Democracia requer distribuição de poder. É por isso que, por mais inoportuna que seja a presente proposta de reforma política, nós mulheres da Bancada Feminina da Câmara, diante de um relatório que não apresentou uma linha sequer sobre aumento da representação feminina, defendemos a retomada da PEC 134/15. Pretendemos que 10% das cadeiras sejam reservadas em 2018 e 2020, 12% para 2022 e 2024 e 16% para 2026 e 2030. No caso específico da Câmara dos Deputados, a ideia é que tais percentuais sejam aplicados a todas as unidades da federação. A proposta é muito aquém da sociedade brasileira, cuja população é predominantemente feminina, mas tentamos dar um passo a frente, ante tantos retrocessos.

Sabemos que a conjuntura e a própria composição do Congresso não é favorável. Inspiradas pelo feixe de luz da vitória de Rosário vamos em frente. Esses momentos difíceis propiciam o desânimo porque a correlação de forças é desfavorável e as regras do jogo são modificadas por conveniência. Entretanto, a luta não pode estar restrita ao Congresso, onde a maioria pensa deter uma procuração do povo para fazer o que bem entender e para se manter no poder. O espaço político não se reduz ao parlamento; é todo e qualquer espaço de vida social.

Precisamos acreditar e lutar pela retomada da normalidade democrática no nosso país e isso, sem dúvida, passa pela força das mulheres.

Mais uma vez recuperemos a história. O que seria da Revolução Russa ou a Revolução dos Cravos sem as mulheres? Em janeiro, nos Estados Unidos, a marcha das mulheres reuniu 500 mil pessoas para protestarem contra o sexismo de Trump e defender os direitos de mulheres e minorias.

O que faz as mulheres participarem de tantos movimentos na história, ainda que não sejam beneficiadas diretamente? A esperança por igualdade. A desesperança é antirrevolucionária e leva à preguiça política. Quem quer mudança não se acomoda. Mesmo em tempos sombrios caminha e age em direção à luz. Nossa luta não pode ser travada só no Congresso. Mais uma vez na nossa história somos chamadas a agir coletivamente. Por isso, encerro este artigo com os versos da ciranda da Marcha das Mulheres: “Companheira me ajuda que eu não posso andar só / Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”. Que possamos dar as mãos e gritar bem alto por mais representação e mais direitos.

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