Com forte atuação da bancada evangélica, a Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta-feira (12), o requerimento de urgência do projeto de lei da gravidez infantil, que prevê pena de homicídio simples para o aborto realizado após 22 semanas de gestação, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. Com a aprovação da urgência, o texto poderá ser votado diretamente pelo plenário da Casa, sem a necessidade de passar por comissões temáticas.

O projeto de lei, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e apoiado por outros 32 parlamentares, altera o Código Penal, que atualmente permite o aborto em casos de estupro, risco à vida da gestante, e anencefalia, sem estabelecer um limite de tempo para a realização do procedimento.

A nova proposta fixa em 22 semanas o prazo máximo para abortos legais, equiparando qualquer interrupção da gravidez após esse período ao crime de homicídio simples, com pena de 10 a 20 anos de reclusão​​​​.

A aprovação da urgência ocorreu em meio a debates acalorados. O autor do requerimento de urgência, deputado Eli Borges (PL-TO), coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, defendeu a medida, argumentando que “a proteção à vida deve ser priorizada”. Por outro lado, a deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP) criticou duramente a proposta, destacando que ela “criminaliza crianças e adolescentes vítimas de estupro”, lembrando que mais de 60% das vítimas de violência sexual têm menos de 14 anos​.

Para a historiadora Maria Fernanda Marcelino, da Marcha Mundial das Mulheres, a medida representa um grave retrocesso nos direitos femininos no Brasil. Ela argumenta que restringir ainda mais o acesso ao aborto seguro coloca em risco a saúde e a vida de inúmeras mulheres, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade​​.

A discussão do projeto ocorre em um contexto de forte polarização política e social. Lideranças da bancada evangélica, que incluem a Frente Parlamentar da Agropecuária e a Frente Parlamentar da Segurança Pública, têm se unido para impor derrotas ao governo Lula em temas ideológicos, colocando em pauta propostas alinhadas aos seus valores conservadores.

Problemas com o PL 1904/24

Desde 1940, o Código Penal garante às brasileiras o direito de interromper a gestação em casos de estupro e risco à vida. Em 2012, o STF estendeu essa permissão aos casos de anencefalia fetal. O PL 1904/24 limita um direito garantido há décadas, colocando em risco principalmente as pessoas mais vulneráveis.

Anualmente, 25 mil crianças de até 14 anos têm filhos no país, segundo dados do Sistema de Nascidos Vivos. Por lei, relações sexuais com menores de 14 anos são consideradas estupro de vulnerável, garantindo a essas crianças o direito de interromper a gestação legalmente. No entanto, entre 2015 e 2022, foram realizados, em média, apenas 1.800 abortamentos legais por ano no Brasil, conforme levantamento da Revista Azmina. “Muitas vezes, a situação de abuso demora a ser descoberta e a gravidez identificada, fazendo com que demorem mais a chegar nos serviços de aborto legal ou nem cheguem a eles”, explica Laura Molinari, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta.

Somente 3% dos municípios brasileiros contam com um serviço de aborto legal. Além das crianças, muitas mulheres precisam viajar para acessar esse direito, enfrentando falta de recursos e estrutura. Aquelas que são mães ou cuidadoras precisam se organizar para essas viagens, o que explica porque muitas vezes a busca pelo direito ao aborto legal ocorre somente após 22 semanas de gestação.

Contexto político

O requerimento de urgência para o PL 1904/24 ocorre em um cenário de complexas disputas políticas, onde os direitos das mulheres, crianças e pessoas gestantes são usados como moeda de troca. Em 17 de maio, uma decisão liminar do Ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que tentava coibir o aborto acima de 22 semanas. No mesmo dia, o PL 1904/24 foi protocolado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) na Câmara Federal. No início de junho, o Brasil foi cobrado pelo Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) da ONU para descriminalizar e legalizar o aborto no país. A cidadania precisa estar alerta e engajada diante dessa disputa contínua.