Foto: arquivo pessoal

Por Felipe Milanez

Foi assassinado na noite deste sábado 7 de setembro, nas ruas de Tabatinga (AM) em frente a sua família, o indigenista Maxciel Pereira dos Santos. Morto por um pistoleiro, com tiro na nuca, o crime levanta suspeitas de encomenda, com viés político, e precisa ser investigado pela Polícia Federal. Santos trabalhava há mais de uma década na Funai na proteção e fiscalização da Terra Indígena Vale do Javari, especializado na proteção aos povos indígenas em isolamento voluntário na região. A região tem inúmeros conflitos que envolvem diretamente o trabalho de servidores da Funai para proteger os direitos territoriais indígenas: caça e pesca ilegal, ação ilegal de madeireiros, garimpeiros, e narcotráfico internacional (rota de cocaína e tráfico de arma).

A TI Vale do Javari é a segunda maior do país, com 8,5 milhões de hectares, habitada por povos de cinco etnias e ao menos 16 grupos em isolamento. Fica no noroeste Amazônico, na tríplice fronteira com Peru e Colômbia. Esse crime brutal, caso não haja investigação e punição, pode não apenas colocar em risco o trabalho de funcionários públicos em todo o país, como revelar um novo de tipo de perseguição e controle de funcionários públicos: o apoio disfarçado do governo a práticas ilegais.

Santos era tido como um funcionário comprometido, aliado dos povos indígenas, e dedicado. Como os melhores funcionários de campo da Funai, ele vivia a contradição de servir a instituição com empenho, mas possuir a instabilidade de emprego das funções gratificadas e colaborações temporárias. O indigenista começou a trabalhar com a Funai para a proteção dos povos indígenas isolados que vivem dentro do Vale do Javari com o experiente sertanista Rieli Franciscato, em 2007 (hoje em Rondônia, chefiando a proteção dos isolados que vivem na TI Uru-Eu-Wau-Wau). A partir da experiência inicial, às vezes vinculado na Funai, às vezes com organizações parceiras para executar os trabalhos, ele assumiu posteriormente uma função na Coordenação Regional do Vale do Javari para trabalhar com foco na fiscalização — a CR era chefiada por Bruno Pereira, atual coordenador geral para Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. Por cinco anos, foi chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Coordenação Regional do Vale do Javari.

Santos trabalhou com função na Funai até os cortes de 2017, que abalaram profundamente a estrutura da Funai. Ele passou a ser contratado, desde então, como colaborador eventual, e havia sido indicado, aguardando apenas a publicação de sua nomeação, para chefiar a Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari — o trabalho executado por indigenistas especializados para a proteção de povos isolados. Em março, a Funai realizou uma grande expedição de contato com um grupo do povo Korubo, que vive em isolamento.

O trabalho de Santos era reconhecido pelas lideranças indígenas e pelo movimento indígena, que participaram do funeral. O vereador Marcelo Makë Turu, liderança Matis, estava triste, como todo seu povo, e preocupado. Reconhecia Santos como um funcionário “dedicado a causa indígenas, muito comprometido”, e teme que o assassinato esteja relacionado com as ações de fiscalização de crimes ambientais praticados por invasores do Javari.

Queima de balsa em operação no rio Jandiatuba. Foto: Ibama

Ataques e ameaça

O Vale do Javari é um território bastante preservado, mas absolutamente cercado.

Presença do exército cada vez mais enfraquecida. Em 2017, foram denunciados dois massacres, com efeito de genocídio, contra povos isolados. Uma das denúncias, feitas por indígenas Kanamari, acusava madeireiros pela morte de 18 a 21 indígenas. A segunda denúncia de genocídio, publicada em primeira mão há exato dois anos (8 de setembro de 2017), informa que garimpeiros podem ter matado cerca de 10 indígenas isolados.

Mesmo com recursos escassos, a Funai intensificou ações de fiscalização na região, contando com apoio do Exército e da Polícia Federal.

O efeito Bolsonaro atingiu em cheio as ações no Javari. A partir de dezembro do ano passado, as bases da Funai passaram a ser atacadas a tiro — coisa que não acontecia. As mensagens de ódio contra os indígenas e insuflando criminosos a invadir terras indígenas parece ter se transformado uma ordem para os bandidos.

Em dezembro, houve troca de tiros contra base da Funai no rio Itacoaí — a fundação solicitou apoio do exército. Desde então, foram quatro ataques. O último, em 19 de julho, supostamente por caçadores ilegais. Ano passado, em setembro, uma operação apreendeu centenas de quelônios, ovos de tracajá e caça. Quase 400 tartarugas! Em junho desse ano, nova operação, nos postos de controle da Funai no rio Javari, mais de mil e quinhentos quilos de piracatinga, centenas de quelônios de tracajá. Essas carnes abastecem sobretudo os mercados de consumo locais na Amazônia.

Outras operações interditaram balsas ilegais de garimpo. Garimpeiros cercam os rios, convivem e ameaçam indígenas nas cidades de São Paulo de Olivença, Tabatinga, Benjamin Constant, muitas vezes apoiadores por prefeitos e vereadores locais. No final de 2017, destruíram 10 balsas.

Em junho desse ano, o líder Adelson Korá Kanamary, da Associação Kanamary do Vale do Javari (Akavaja), junto de Paulo Dolis Barbosa da Silva, da etnia Marubo, e coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), denunciaram a presença de mais de 10 dragas no rio Jutaí. Os garimpeiros estariam ameaçando indígenas do povo Tsohom Djapa, da aldeia Jarinal, na Terra indígena Vale do Javari.

Aos conflitos dos garimpos, se soma a violência do narcotráfico na região e a disputa nacional do PCC com o Comando Vermelho por rotas internacionais do fornecimento de cocaína. Essa presença ainda é pouco investigada, e como ela atinge os povos indígenas. Há registro de que rios da TI Vale do Javari possam ser usados nas rotas de tráfico de cocaína e de armas. Enquanto isso, a presença do garimpo facilita a lavagem do dinheiro ilegal na tríplice fronteira.

Por essa razão, além de Santos ter sido nos últimos anos identificado como funcionário da Funai, ter participado das ultimas ações de fiscalização como colaborador, e ser a região uma tríplice fronteira, o crime deve ter uma investigação federal. Apesar disso, há uma briga de competência entre as polícias civis e federal e entre as promotorias. Um empurra-empurra. Homícidio é um crime de competência das polícias estaduais. Mas a exceção está na Constituição, no artigo 109, para o caso de ser cometido contra funcionário público federal, no exercício de suas funções e também em razão delas. Se a razão do crime foi a participação de Santos na fiscalização e proteção da terra indígena Vale do Javari enquanto em serviço para a Funai, o crime deve ter a competência federal.

Efeito Bolsonaro 2: ameaças a servidores

O segundo efeito da campanha e chegada ao poder de Bolsonaro nessas regiões de conflito na Amazônia está relacionada com a perseguição a funcionários do Ibama, ICMBio e da Funai, ofensas públicas contra esses servidores, cenas e discursos de apoio a madeireiros, grileiros e garimpeiros incitando a reação contra operações de fiscalização.

Nesse sentido, o silêncio ou impunidade no assassinato de Santos pode ter um efeito devastador em toda ação de comando e controle na Amazônia. A Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), manifestou em carta extremo pesar com o assassinato, e espera rápida e rigorosa investigação do ocorrido. Informa também que:

“este episódio trágico e extremo se soma a muitos outros. Nos mais diferentes contextos, da Amazônia à região Sul do país, indígenas, servidores e colaboradores atuam em condições precárias e insuficientes na proteção de Terras Indígenas. Por conta da participação em ações de combate a ilícitos nesses territórios, encontram-se cada vez mais ameaçados e vulneráveis.

São relativamente raro o caso de assassinatos de servidores da Funai em função — comparativamente diante do risco que muitos estão expostos e a quantidade de ameaças de morte que recebem —, razão pela qual a morte de Santos merece muita atenção pois pode indicar uma mudança muito perigosa nos rumos da violência na Amazônia.

Em minhas pesquisas, como as que resultaram no livro Memorias Sertanistas, identifiquei que funcionários da Funai possuem duas situações de maior exposição ao risco de mortes: por indígenas isolados ou então pelos inimigos dos povos indígenas, isto é, aqueles que avançam nas frentes agropecuária ou mineradora, garimpeiros, madeireiros, grileiros. No primeiro caso, a morte pode estar relacionada com o risco inerente do trabalho com povos isolados ou recente contato, como no caso do Javari, onde já foram mortos funcionários, como o indigenista Raimundo Batista Magalhães, conhecido como “Sobral”, em 1996. Mas é raro, e se deve à violência na região e o fato dos indígenas terem sobrevivido a outros ataques e massacres de invasores, fazendo com que estejam em situação de guerra contra os brancos.

Há diversas medidas de segurança que são tomadas e, na eventualidade de um ataque, os agentes da Funai possuem consciência do risco. Por exemplo, Afonso Alves da Cruz, o “Afonsinho”, flechado pelos Arara em 1979, e José Carlos dos Reis Meirelles, flechado no rosto em 2004. Nesses casos, os sertanistas sabiam dos riscos e que os indígenas não tinham compreensão da diferença entre servidores da Funai que estavam lá para protegê-los, e daqueles brancos que invadiam seus territórios para matá-los.

Mas ataques por madeireiros, invasores, garimpeiros, ou então narcotraficantes, representam ataques às instituições do Estado, e é dever do Estado combater a concorrência ilícita do uso da violência. A não ser, é óbvio, que o Estado esteja dominado por um governo criminoso que apoie essas práticas ilícitas.

Se não houver uma investigação imediata, que elucide os fatos e puna os criminosos, não apenas o pistoleiro, mas os mandantes, e que tenha competência federal para essa investigação, podemos estar à beira de um abismo institucional. A morte de Maxciel Pereira dos Santos pode ser um direto ataque a todos servidores, não só da Funai, mas do Ibama, do ICMBio, fiscais do Trabalho, e aqueles que servem em defesa do bem comum.

Todos estamos em risco, até que uma investigação elucide o crime bárbaro contra uma vítima indefesa que defendeu os povos indígenas, a natureza e o patrimônio público federal nos últimos 12 anos. E ainda mais em risco caso esse assassinato passe a ser percebido como uma extensão da Lei da Mordaça, censuras, e perseguições políticas em curso no executivo federal.

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