Foto: Marcelo Costa Braga

Chegando aos 87 anos, após atravessar três cânceres, o músico Zé Katimba esbanja simpatia e vivacidade. De forma alegre e descontraída, gosta de um bom papo, principalmente sobre samba e política. Diretamente de Guarabira, no interior da Paraíba, veio ao Rio de Janeiro no início do século passado fugindo da seca para fazer história neste gênero musical. É autor de mais de 800 composições de samba, uma delas, o Martin Cererê, inclusive, virou tema de novela na Globo cujo personagem foi interpretado pelo ator Grande Otelo. É um dos fundadores da escola Imperatriz Leopoldinense, onde já ganhou alguns títulos.

Katimba fez parcerias com vários dos grandes nomes do samba nacional, principalmente Martinho da Vila com quem há quarenta anos trabalha junto. É muito respeitado no meio, mas não tem a mesma visibilidade midiática que outros famosos. Preso político durante a ditadura, sempre tomou posição em relação aos temas relevantes da nossa história. Muitas de suas músicas traduzem isso, e até hoje não para de produzir. Nossa conversa ocorreu num evento em sua homenagem no Quilombo do Grotão, periferia de Niterói (RJ), local de resistência afro cultural.

Nesta entrevista, ele fala sobre a qualidade musical e conscientização política da nova geração do samba. Aborda também os preconceitos dentro do meio e na sociedade em relação ao machismo, além de analisar alguns aspectos da conjuntura política atual. Para ele, a indústria fonográfica e a mídia não dão o valor necessário à cultura tradicional e de raiz, mas a internet tem colaborado para a divulgação dos trabalhos dos artistas. Quanto ao atual governo, com os cortes na educação e total abandono da cultura não é possível que vá para frente, na sua opinião.

Com toda sua experiência artística no meio, em que momento o samba se encontra depois de muita repressão e ser ícone da cultura nacional na mídia?

É um momento muito bom, porque hoje graças à internet cada aparelho vira um canal de televisão em nossas mãos. Por ser mais velho não tenho muito intimidade com essas ferramentas, mas tem sempre alguém para me ajudar e estou aprendendo. Assim a gente chega nas casas, mas ainda há uma repressão porque é de acordo com a máquina. O sistema determina junto às gravadoras e editoras, a mídia que é o centro que comanda a divulgação, então eles escolhem e passa a tocar só aquilo até esgotar e ganhar muito dinheiro. O funk surgiu das comunidades, de dentro para fora e está aí. A TV Globo, que era a senhora poderosa e ainda é, comandava quem aparecia ou não na televisão. Hoje é a internet que determina dependendo de quantas visualizações o cara tem. Às vezes o cara tem não sei quantos milhões, então precisa da imagem dessa pessoa e a música lá.

Se estabelece uma relação estritamente comercial?

Exatamente. O samba ainda é hoje reprimido, porque você não vê nenhum órgão federal ou qualquer outro dando apoio a um projeto. Ainda enfrentamos muita dificuldade, sempre foi mas hoje é ainda mais por parte deles. Mas quando um jovem chega a um ponto que não dá mais para esconder, eles às vezes chamam. Sem querer pichar você tem, por exemplo, o forró de plástico e o pé de serra, que é o de raiz. As pessoas teriam que botar um triângulo, uma zabumba, sanfona, mas também baixo, bateria, guitarra, tudo o que tem direito para fazer um som pesado. A base do som é a raiz e seria bom para competir. Mas o forró de plástico tem dois caras cantando e uma mulher, aí o timbre dela é igual a qualquer outra de qualquer banda desse tipo de forró e os caras a mesma coisa. Se trocar não faz a menor diferença, mas na Portela você não consegue trocar um Monarco.

O sistema não quer isso, e é por isso que ele sufoca o que é raiz. Quando eles manipulam tanto faz, você nem percebe o timbre, a roupa, o cabelo, é tudo igual. Não tem uma referência autêntica feito um Candeia. O original não interessa ao sistema, porque essas pessoas questionam e pensam. O mais importante de tudo é a consciência, porque ela não tem preço.

Foto: Marcelo Costa Braga

Quando você fala isso já caminha um pouco pro lado político, não só pelo que a pessoa canta mas todo um contexto por trás que ela representa?

Tem que ter! Todo mundo diz que não gosta de política, só que a gente respira e depende dela toda hora. Tá na cerveja, na gasolina, qualquer coisa. Se a gente não entende e não tem consciência, ficamos totalmente entregues de acordo com o interesse deles. Se você tira a dignidade e alegria do ser humano não sobra nada, então fica fácil quando eles vêm com o rolo compressor.

Hoje temos um governo federal cortando verba, não gosta de escola, de professor, estudante, então não gosta de gente, né? O cara prefere uma arma, mas se não tiver alguém para empunhá-la? Quer dizer, há uma contradição até nisso. Precisamos tomar mais conhecimento para não votar por votar, porque isso não tem saída: alguém vai te governar. Comparando com os mais antigos da minha geração, os novos compositores, cantores, principalmente de samba, onde tenho uma visão maior, muitos já têm escola, estudam mais o que estão fazendo, são politizados e sabem mais das coisas.

Mas Candeia era um cara altamente politizado, dentre tantos outros, fizeram o Clube do Samba… Hoje tem proporcionalmente mais gente envolvida com essas questões?

Sim, antigamente tinha um cara ou outro, mas não tinha eco. No meio de uma multidão você é só mais um… Só na ala de compositores da Portela tinha mais de quatrocentos, por exemplo, e quantos fazendo isso? E o que é pior, você conversar com quem não entende, é muito difícil. Hoje os mais novos já estão ligados e com certeza vai melhorar, porque não estamos mais só tendo aqueles votos em troca de qualquer agradinho. O voto não está mais tão comprado, mas ainda é uma coisa forte. Não era para a esquerda perder esta eleição, mas foi aquela coisa da falta de conhecimento. Foi democraticamente eleito um cara despreparado.

Você atribui a que este fenômeno?

Está ligado à cultura do modismo no país, quando tem uma tendência para um lado vai todo mundo. Foi nessa de que “não quer ser mais roubado”, mas se você chegar perto dos novos compositores de samba já não vai ouvir isso. A maioria está politizada, coisa que não tinha nos sambistas das antigas. Não gostar de política é cômodo né, não dá trabalho, às vezes no caminho o cara dá um papel e votam nele. É a vida dele, dos filhos, dos netos, de um país e a gente precisa disso. Como você vai evoluir sem escola? Como vai pra frente com pessoas que não pensam e sem consciência? Vai para lugar nenhum!

Além da política, essa nova geração está representando também na questão melódica, poética, etc, da qualidade e continuidade musical do samba?

Eu gosto muito. Você pega qualquer um deles e bota dentro de um estúdio e o cara lê partitura, cifra, toca lendo, escreve, etc. Na época do Adelzon Alves (radialista que lançou muitos sambistas) era um ou dois negros que gravavam aquele negócio ali. Depois passou a entrar sambista em estúdio e ter conhecimento, e foi vindo essa nova geração com uma estrutura muito legal nesse sentido.

Digo mais recente, porque de cinco a dez anos para cá está morrendo bastante gente muito respeitada no samba e essa galera mais nova que vai ocupar os espaços.

Um dia desses, por exemplo, no Trapiche da Gamboa, do Diogo Nogueira, tinha um menino muito bom. Cantor e compositor lançando um CD e fizeram uma pergunta: por que não se faz mais samba romântico daquela maneira que se fazia? Naquela época, ele disse, não tinha o tiroteio que tem hoje. A Lapa era mais romântica, tudo era mais romântico, você andava tranquilamente pelas ruas da cidade. Gosto da poesia dos mais novos, mas quando você tem uma coisa que te abastece de energia, coisas boas e de sentimento, que você vive, não de ouvir falar ou ler num livro, é bom demais para quem cria. Mas o que tem perdido um pouco é em relação ao sentimento. Às vezes você vê uma música com a poesia bem feita, mas poderia ter um sentimento e uma carga de emoção maior. Mas são muito boas as músicas.

Cita nomes para a gente visualizar a quem você está se referindo.

Não estou muito por dentro. Não é porque é meu filho, mas o Inácio Rios é muito bom e outro que gosto muito é o João Martins. Estes são maravilhosos, mas tem um monte deles e eu que não estou muito no meio e estou desatualizado. Talvez esteja cometendo uma injustiça, mas por não conhecer. Tem muita gente fazendo muita coisa boa por ai.

Tem uma tradição histórica do samba em relação às raízes, e certa época houve a disputa sobre a inserção de instrumentos mais modernos. Você citou o forró, mas acha que no samba agrega valor também essa modernização?

O Adelzon quando começou a produzir samba lançou a Clara Nunes, Dona Ivone Lara, João Nogueira e muitos outros, mas quando quis botar um baixo ou piano ninguém aceitou. O instrumento de percussão é harmônico mas é percussão, então é necessário. Fica só cavaquinho e violão, mas para uma obra como o samba que é riquíssima, a música toda africana, ela tem um sentimento e precisa ser bem vestida. Mas o samba sempre foi se ajeitando e o Adelzon foi um grande responsável. Nunca quis cantar porque não gostava de ouvir minha voz, todo mundo queria que eu gravasse, então fui gravar um disco e ele era um cara que onde botava a mão virava ouro. Gastamos uma grana para produção desse LP, dava pra fazer três discos de Maria Bethânea, Chico Buarque e Gilberto Gil na época, porque os caras por preconceito não aceitavam tocar com tamborim. Ele achou que ia dar certo, tinha muito contato e audiência e conseguiu, tudo que está nesse disco o pessoal passou a fazer depois.

Sou de acordo que tem que manter o chão, mas a partir dele você pode construir uma senzala ou várias coisas. Não perdendo a essência está tudo bem. O samba enredo, por exemplo, era com quarenta e cinco ou cinquenta linhas e eu fiz com dezoito. Todo mundo jogou pedra, me chamaram de louco, e a escola só não desceu porque a única nota 10 foi do samba. Depois Martim Cererê em 1972 tinha também 18 linhas e isso mexeu com a estrutura do carnaval carioca, mesmo eu sendo nordestino. Tem que fazer a essência, mas ter uma coisa a mais. Se não, o que estou fazendo aqui? Deus me deu o dom para compor, a cabeça para pensar, ai é até sacanagem com ele não usar. Nordestino com a cabeça deste tamanho e os outros pensando por mim, porra?! Salve os antigos e a nova geração.

Foto: Marcelo Costa Braga

Qual a importância do samba em termos de resistência na cultura popular brasileira?

É tudo, porque é o maior espetáculo da terra. Já tem muita coisa da divisão do samba que tem na música africana. Ganhou essa colaboração, mas rapidamente vieram as pessoas do sistema. A passista tinha um tremendo valor, tanto a mulher quanto o homem, cada um dançava do seu jeito, era bonito de se olhar. Ai veio o coreógrafo e agora todas dançam iguais e parece robô, perdeu a espontaneidade.

Bato palma aos carnavalescos que fazem aquelas alegorias enormes lindas, só que aquilo não tem a vida que tem um verso ou uma ginga de um homem e de uma mulher dançando e se entregando. Porque há uma troca, foi castrada por essa coisa moderna. Não por sacanagem, mas só porque eles não entendiam nem entendem. Não abro mão das escolas de samba, tem um departamento cultural para comandar isso, mas tem que respeitar a essência. Não pode complicar, o nome é Grêmio Recreativo Escola de Samba, então tem que ter samba.

Como é essa coisa do preconceito dentro do próprio samba?

A mulher não participava do samba por causa do machismo, e aí ela foi conquistando até que hoje temos mulheres tocando todos os instrumentos e melhor que muito homem. Porque elas são talentosas, só que tudo que vira meio que modismo e a mídia sente que aquilo vai ficar muito forte vai arrumando um monte de sigla pra enfraquecer. O cara é negro, então você vai defender o negro, você vai defender o sarará, o mulato, o pardo, etc. Acaba que negro não sobra quase nada, o que é importante ao sistema. Então o importante não é aquilo pra ele ou nós, a mulher é música e faz parte do processo. Só que tem coisas embutidas da própria mídia que fica tirando delas o que eles querem.

Mas esse preconceito do próprio samba não deu mais força a isso?

O problema é que você não pode ficar mais forte sendo sozinho, tem que pensar no coletivo. Se antigamente tinha aquela coisa de que isso era samba de branco, não pode, tem branco que dança melhor que negro e negro que faz coisa melhor que branco. O que nós precisamos mesmo é humanizar, porque o mundo está doente e o remédio para curar esse mal é o amor. Precisamos humanizar e irmanar, isso com uma consciência faz sumir essas coisas. Estou achando até legal agora na Globo uma novelinha que não briga, o menino com a branca, a branca defendendo o negro, cabe todo mundo e fica tudo certo. É questão de gosto, o que a gente precisa é o respeito pelo ser humano. O negro e a mulher são humanos, bicho!

Até pouco tempo antes das eleições tinha uma coisa muito triste de se ver, falando das mulheres negras como discriminação. Mas depois passaram a falar mulher, porque no morro na comunidade tem branca sem dente, sem emprego, passando necessidade, morando mal, então é o ser humano. Não importa se a mulher é negra ou branca, talentosa ou não, temos que defender. Ela é importante, amadurece mais cedo que o homem. Se naquela época dos coronéis ou do samba você sentasse e chamasse a filha mais velha para sentar na mesa para discutir ou dar opinião sobre aquilo, o mundo ou pelo menos o Brasil estaria melhor. O menino sentava na mesa para concordar com o pai para ele não cortar sua mesada e lhe chamar de imbecil. O que ele queria mesmo era não perder a banca com o pai, que as irmãs não tinham.

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