Guarda Rural Indígena. Foto: Arquivo / Funai

Por Henry Mähler-Nakashima

Atualmente, uma delegação formada por indígenas de diversas etnias percorre a Europa a fim de denunciar e divulgar as tragédias sofridas pelos povos originários, intensificadas desde a campanha presidencial de Jair Bolsonaro e agravadas com sua posse. Contra os discursos – e ações – que pretendem escancarar a floresta amazônica para a exploração de seus recursos e a declarada intenção de abrir as terras indígenas para o mesmo fim, esse grupo busca apoio de entidades e políticos europeus, aliados históricos e aparentemente mais sensíveis a tais questões.

O presidente brasileiro segue insistindo que tal medida levará avanço econômico às longínquas terras do norte e a sua não exploração é um desperdício. Da mesma forma, pretende levar “desenvolvimento” aos indígenas, que de acordo com ele, estão ansiosos por progresso, como se fossem uma unidade. Ora, o presidente ignora fatos importantes: a grande diversidade étnica existente no país – mais de 300 -, o que leva a várias formas de entendimento de mundo, e os ensinamentos que a história tem para nos dar. É bem verdade, entretanto, que, neste caso, a história precisa de mais luz para se fazer conhecida. Explico.

Com o golpe de 1964, o discurso em prol da modernidade, almejada desde o século XIX, passou a se manifestar na expansão da ocupação do território nacional. A região norte recebeu especial atenção com a criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônica (Sudam), com linhas de financiamento para áreas de agropecuária, com a formação do Fundo de Valorização Econômica da Amazônia, e com sedutores abatimentos de imposto de renda. As rodovias surgiram como artérias de asfalto conectando as capitais e possibilitando que escoassem todo ímpeto desse progresso. Aos olhos desfocados dos ufanistas escapavam as consequências nefastas e sangrentas dessas medidas. Porém, não foi por falta de informação. Uma busca rápida pelos periódicos da época podem revelar as várias notícias a respeito.

É verdade que durante os anos de chumbo vozes ecoavam pelos confins do país denunciando as mazelas causadas aos povos indígenas. Mas isoladas, soavam solitárias. Essa realidade começou a ser alterada somente em 2014 com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que ampliou o número de mortos da ditadura ao incluir mais de 8 mil indígenas. Mas Marcelo Zelic, que participou ativamente das pesquisas, afirmou repetidas vezes que “são mais de 8 mil mortos de apenas 10 povos”.

Desse número, por volta de 2 mil são de Waimiri-Atroari, cujo território está no caminho da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, e possui grande riqueza mineral. Nesse período, diversas empresas nacionais e estrangeiras de mineração pediram permissão para exploração. E foi esse processo que levou essa grandiosa soma à morte. Desde os primeiros contatos, durante a atração e pacificação desses indígenas, até a construção da rodovia, aconteceram contaminações por doenças (deliberadas ou não) e assassinatos, não se limitando aos Waimiri-Atroari.

Durante o mesmo contexto, os Maxacali de Minas Gerais, vivendo uma grande crise alimentar, devido às condições impostas pelo “homem branco”, rebelaram-se atacando e matando o gado das fazendas vizinhas. Isso levou Manoel dos Santos Pinheiro a colocar em prática outra tática militar, a criação do reformatório Krenak e da Guarda Rural Indígena (GRIN). O reformatório era uma prisão para os indígenas e, nas palavras de Queirós Campos, à época presidente da FUNAI, a GRIN tinha objetivo de “defender aldeamentos contra abusos e impedir que os silvícolas também pratiquem desmandos”, ou seja, um eficaz modo de tê-los sob controle usando-os como sua própria força repressora.

As violações contra os povos indígenas passaram por deslocamentos compulsórios, aculturamento forçado, mortes por doença, expulsões, assassinatos, etc, e  lentamente essa história começa a ser reconhecida. A Comissão Nacional da Verdade foi um grande e importante passo – mas deveria ser continuada. Agora, o Ministério Público parece dar maior atenção a esses casos. Manoel dos Santos Pinheiro finalmente enfrentará uma ação penal por ter cometido crime de genocídio contra os Krenak (link da notícia), e o tema vem ganhando mais espaço na mídia.

A história brasileira tem muito a ser desvelado sobre esse período tão nebuloso, e como se todas as tragédias sofridas pelos povos originários nunca tivessem acontecido, os discursos do presidente vociferam a favor de um progresso avançando sobre a floresta, sobre as terras indígenas, sobre os povos indígenas, como se repetisse o velho discurso da modernidade. Mas não se engane. Não estamos testemunhando a história se repetindo, mas a continuidade de uma política de Estado que, em nome desse ímpeto devasta, destrói, aniquila e mata.

Henry Mähler-Nakashima é membro da Ocareté, doutorando em História Social pela PUC-SP e pesquisa a relação da FUNAI e os Waimiri-Atroari durante a ditadura. Contato: [email protected]

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