Foto: Paulo Vitor Maués / Estudantes NINJA

Por Raul Alves Barreto Lima

O momento histórico e político de nosso país merece atenção e reflexão crítica constante tendo em vista que, em face de todos os retrocessos e desmontes feitos e ensaiados até aqui, suscitam alternadamente em nós sentimentos de impotência e desesperança. Resolvemos tratar especificamente da temática da educação pois esta tem sido a que mais vem sofrendo do ponto de vista dos cortes orçamentários, bem como os constantes ataques de perseguição ideológica. Bom, sabemos que esses constantes ataques se tratam de um projeto de governo que, escondido atrás de uma bandeira pretensamente apartidária e sem ideologia, visa ruir espaços importantes de desenvolvimento crítico para endossar suas próprias ideologias, as quais, vemos cotidianamente quais são, pois todas elas, sem exceção, se fundamentam em modelos hegemônicos conversadores, e isso também é ideológico.

Pois bem, sabemos que desde 2013 o Brasil vive uma polarização política em que também cresceu massivamente o despertar em grande parte da população com suas pautas fundamentalistas, acríticas e autoritárias. Ainda em 2016 tivemos o golpe contra a presidenta Dilma Roussef e em 2018 prende-se de forma altamente política e planejada aquele que venceria as eleições: Lula.

Não nos requer muita reflexão para nos darmos conta que algumas das variáveis que colaboraram para isso foram os preconceitos de classe, raça, sexo/gênero, orientação sexual, regionalidade, religião e por aí; e, não é coincidência percebermos quais estratos da população brasileira constituem foco de perseguição do governo e de seus eleitores mais fiéis. Um exemplo ilustra bem isso: quando parte da população brasileira – anteriormente excluída – passou a adentrar nas universidades, isso mobilizou nos detentores exclusivos destes espaços, sentimentos como repulsa, ódio e reatividade, desengatilhando então preconceitos, humilhações, apartações e ódios, afeto este último um dos mais poderosos para se compreender a conjuntura política atual.

Bom, sabemos que foram nos governos Lula e Dilma que a educação, de uma forma geral, obteve um investimento constante da mais alta relevância social, e a partir daqui trago alguns porquês. Compreendo os espaços educacionais, como lugares de produção de conhecimento e saber. Historicamente, quem ocupou esses espaços e produziu conhecimento foram as elites, personificadas no homem branco de classe alta/média. Histórica e socialmente, é a partir desse substrato social que o saber é investido de legitimidade e torna-se hegemônico, o qual passa também a definir o que são e como devem ser todos os “outros”. Esses “outros” aqui abarcam todos aqueles/as que socialmente, em suas posições de subalternidade, não possuíam o poder de autodefinição a partir de sua própria experiência e, em termos de educação, acredito que seja justamente aqui que torna a pauta “Lula livre” o ponto de aprisionamento de um modelo de existir e fazer-se sujeito social. Em resumo, a partir do momento que pessoas outras adentram em espaços de construção de conhecimento, trazendo suas próprias experiências a partir de suas localidades¹, isso estremece os modelos hegemônicos variados, pois em seu movimento dialético é capaz de fazer uma fissura na intersecção da relação opressor- oprimido, tensionando então os modelos de dominação e poder.

Passamos a não mais ter a caricatura do homem branco, imbuído de seus interesses e preconceitos, definindo o que era a negritude, as relações LGBT, os povos indígenas, os povos das periferias brasileiras, envoltos por toda sorte de vulnerabilidades sociais, os quais sentem o poder do Estado pela via policial e do extermínio, uma política de morte que dita quem merece viver e quem merece morrer – necropolítica. Passamos por um período histórico recente em que a conformação com os modelos de exclusão se abalaram, o que também pode explicar essa reatividade à educação e às pessoas que passaram a ocupar espaços de poder – como nas universidades –, podendo então falar sobre as realidades e experiências de seus povos e de seus pares e, assim, fazer movimentar democraticamente a construção crítica do conhecimento, o que, a meu ver, trouxe um enriquecimento da maior grandeza para a sociedade brasileira.

A universalidade das teorias e definições que costumam atender a projetos de poder e dominação sofreram a ruptura que precisavam, e essa revolução não foi uma luta armada; foi uma luta de saber pautada nas questões identitárias, foi uma luta de significados, ou recorrendo a Patricia Hill Collins, houve o enaltecimento da “experiência vivida como critério de significado”².

O aprisionamento político de Lula é simbolicamente interessante porque também representa o aprisionamento de poder esperançar.

Antes de finalizar essa breve reflexão e recorrendo à importância da pauta “Lula livre”, quero trazer outro ponto que considero da mais alta relevância. O aprisionamento político de Lula é simbolicamente interessante porque também representa o aprisionamento de poder esperançar. Sustento isso na medida em que, ao oferecer ao povo condições nunca imaginadas, tornou possível à população excluída historicamente de inúmeros espaços, a possibilidade de sonhar sonhos outros. Quantos foram os relatos vindo dos negros e das pessoas vindas das classes sociais mais baixas que romperam a transgeracionalidade familiar e comunitária e foram os primeiros de suas famílias a conseguir um diploma de ensino superior? Quantos a partir disso puderam almejar, disputar e de fato alcançar posições sociais de prestígio, passando então a transformar realidades? Pensemos na relevância disso para a construção das políticas públicas de formas mais democráticas e plurais, como de fato devem ser. A educação nos sentidos aqui narrados é emancipadora.

Parece que vivemos uma realidade distópica em que buscam dilacerar nossa imaginação e criatividade, buscam nos embrutecer, nos entorpecer ao ponto de nos conformarmos de que nada há o que fazer para sonharmos coletivamente o sonho de um país mais justo preservando suas diferenças e pluralidades. Por entre os vãos e as fissuras proporcionadas pelas alternâncias de esperança e impotência, subjaz a historicidade em sua inerente movimentação. Desse modo, decidimos ficar com Angela Davis, pois “a liberdade é uma luta constante”³, afinal, “não existe revolução final. As revoluções são infinitas”4.

Raul Alves Barreto Lima é psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia Clínica (PUC/SP).

Referências:

1 HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5) 1995: pp. 07-41.

2 COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro. 1a ed. – São Paulo: Boitempo, 2019.

3 DAVIS, A. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.

4 ZAMIÁTIN, I. I. Nós. São Paulo: Aleph, 2017.

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