Foto: Mídia NINJA

Tenho celebrado muito a união de pessoas negras recentemente no Rio, especialmente de mulheres. Seja nas sessões lotadas de Black Panther, do bonde preto formado dentro do 8M, ou ainda na vitória coletiva que foi o lançamento do Querendo Assunto. Tem sido dias alegres, energizantes, que jogam pra frente, que me enchem vontade de vencer. Mulheres negras felizes são uma bomba de estímulo pro mundo. Você pode fazer o teste – se a preta ao seu lado tá feliz, a vida de todo mundo fica mais fácil.

Mas ontem não foi um dia desses. Ontem foi dia de choro.

Quero que entendam uma coisa: Não há cena mais deprimente do que duas mulheres negras chorando no abraço uma da outra. Não há, porque sabemos de onde vêm esse choro, conhecemos o motivo. Não há, porque elas pariram o mundo, que se revoltou contra elas e agora a enchem de nove tiros. Não há, porque toda mulher negra chora com culpa porque sabe que não há tempo pra isso. Hoje foi Marielle. Amanhã pode ser eu. Depois será você.

Todos sabem que eu sou muito pragmática, mesmo quando emotiva. Assim que soube – e chequei, porque todo mundo queria que fosse fakenews – pensei nas etapas a cumprir. Precisamos fazer uma nota, precisamos fazer um card, precisamos mostrar de que lado estamos e denunciar uma execução a céu aberto numa cidade do tamanho do Rio de Janeiro. Dedos rápidos no teclado, precisos, objetivos. Mas eu precisava trocar de abas.

Não contava com o que aconteceu no caminho do mouse. Fui perdendo as forças, definhando, me consumindo em lágrimas. Estava narrando que o Brasil havia perdido uma das grandes referências de negritude feminista, que a militância tinha perdido uma grande liderança, que Rio de Janeiro tinha perdido uma grande (e mais votada!) vereadora. Mas ali descobri que eu estava perdendo a esperança.

Uma das pretas NINJA, Leleca, percebeu e me abraçou. Depois ganhei outros cuidados da Bianca. Mais tarde, Ana Paula me segurou no meio da rua e pediu pra eu lembrar de respirar. E durante todo esse tempo me alimentava a distância da energia vital de tantas outras – da Isis, da Mari Ramires, Tainá.

Ali, afundada no corpo de outras mulheres negras, lembrei dos momentos que a história da Mídia NINJA e a minha se cruzaram com a da Mari. Lembrei do rolê que demos na Maré pra gravar o perfil dela no Vereadores que Queremos, no abraço apertado depois do Pretas no Poder, das vezes que nos ligamos para que ela fosse ao ELLA, na carta de recomendação que ela escreveu para um projeto que participei da ONU. Em nossas parcerias, Marielle me disse poucos nãos, mas para além disso, Marielle me disse todos os sims.

Pretas no Poder, no FRONT, Rio de Janeiro, com participação de Marielle Franco | Foto: Mídia NINJA

Às vezes acho que entre uma mulher negra e outra existe um reino. Uma terra encantada que é criada entre os nossos braços, cultivada nos nossos amores e semeadas pelos nossos desejos. Mulheres negras se olham ao cruzar a rua. Percebem a existência uma da outra e não existe ligação mais forte do que a nossa. Nós gritamos juntas, dançamos juntas, militamos juntas.

E ontem morremos juntas.

“Eu sou porque nós somos”. Marielle venceu as eleições levantando a bandeira de uma filosofia africana que conhecemos na prática. Nos vimos muitas vezes nas vitórias dela, fazendo essa frase ecoar nos vales dos nossos reinos. Fomos tão felizes, mas tão felizes juntas que cobraram a conta;

Quando levantam uma arma à Marielle, levantam uma arma para todas nós. Quando atiram em Marielle, atiram em todas nós. Quando mataram ela, mataram todas nós. Mas quando todas nós sentimos dor, todas nós reagimos. Hoje, na vigília, nos atos, no seu velório, vamos mostrar que quando tanto preto chora junto o mundo muda. Se realinha.

Se o recado da execução era que uma mulher preta, favelada, lésbica, mãe aos 19 anos, funkeira, não pode ter sucesso, aguardem. Mil outras Marielles surgirão e honrarão o seu legado.

Pelo fim do genocídio do povo negro.
Pelo fim da militarização dos nossos territórios.
Pelo fim do choro em nossos reinos.
Pela memória de Marielle.

Dríade Aguiar.

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