Foto: Mídia NINJA

Alerta de Spoiler: este não é mais um artigo de uma mulher “brigando” com a outra ou mais uma demonstração de falta de sororidade feminina, mas sim um debate político, público e necessário sobre o feminismo e nossas vidas

No último dia 14, a deputada Tabata Amaral afirmou, no programa Roda Viva que, por “dilemas éticos”, não defende a legalização do aborto e que tal posicionamento não lhe fazia menos feminista. Tabata justificou que seu dilema se dá por considerar as duas vidas: a da mulher e a do feto. Essa afirmação gerou, felizmente, um frutífero debate nas redes sociais sobre o que é ser feminista e sobre os nossos direitos reprodutivos.

Como legisladora, o que deve guiar a formulação de leis da deputada e de seus colegas é a Constituição Federal, que garante um Estado laico. Aí está um sério debate sobre a vida. Nós, feministas, nos atemos às definições científicas. Elas afirmam que não existe vida antes da formação do sistema nervoso central. Por isso, a maior parte dos países que legalizaram o aborto definiram entre 13 e 14 semanas o limite para realização da interrupção da gravidez. Fora disso, o que restam são nossas crenças que não podem passar por cima da ciência.

O debate sobre as políticas públicas, que atinge toda uma coletividade, não pode se limitar às convicções pessoais. Ao considerar a minha vida e a de Tábata, nós, mulheres brancas e com condições econômicas privilegiadas, podemos escolher não abortar em caso de gravidez ou, então, pagarmos de 3 a 5 mil reais para fazer um procedimento seguro em uma clínica clandestina. Mulheres como eu e Tabata podemos abortar, apesar da atual legislação, e não corrermos risco de vida. Mas essa não é a realidade da maioria. Basta saber que a cada dois dias uma mulher morre fruto do aborto inseguro – elas, quase sempre, são negras e pobres.

É preciso esclarecer, no entanto, que a discussão sobre a legislação acerca dos direitos reprodutivos das mulheres é uma questão de saúde pública. Até porque não sejamos hipócritas ao ignorar o fato de que a interrupção da gravidez é uma realidade no Brasil – a despeito de ser criminalizada. Uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já abortaram no país, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, desenvolvida pelo Instituto de Bioética (ANIS).

Então, o debate é sobre como o Estado vai lidar com essa questão. Aí, poderemos passar a fazer as perguntas que realmente importam: haverá educação para a saúde e sexualidade nas escolas para alertar meninas e meninos sobre o uso de métodos contraceptivos? Haverá apoio psicológico e de assistência social para amparar a mulher na sua escolha? O SUS deve oferecer aborto seguro? A mulher que aborta deve ser presa?

Iremos, portanto, aos dados, que nos importam mais do que crenças e que mostram que a desigualdade está presente na negação, a milhões de mulheres, do direito à maternidade. Em um país desigual como o Brasil, não há acesso universal ao pré-natal e ao parto humanizado. Ser mãe nessas terras significa aumentar o risco de desemprego em um país com uma taxa de 13% de desempregados quando 53% desse contigente é composto por mulheres. A falta de creche faz com que contemos, apenas, com uma rede de apoio de tias, avós e vizinhas que “seguram as pontas”, quando podem. No trabalho informal, temos 40% de mães que não têm direito à licença-maternidade.

É por causa dessa realidade que a legalização do aborto é uma pauta central do feminismo. Respeito a deputada Tabata Amaral por sua trajetória pessoal e por ser uma representante renovada de uma corrente liberal em crise pela ascensão do conservadorismo. Seremos aliadas em algumas batalhas e teremos outras discordâncias, além do tema deste texto. Por isso, me disponho a dialogar sobre seus argumentos e a convidá-la a refletir.

O feminismo é um movimento histórico de luta das mulheres por igualdade de gênero, numa sociedade em que as opressões de raça e de classe se entrelaçam e aprofundam a desigualdade. Negligenciar os fatos e dados descritos acima não é compatível com alguém que se considera feminista. Em um momento em que milhões de jovens mulheres se levantam contra o machismo, o feminismo não pode ter seu sentido esvaziado, não pode ser uma palavra distorcida. A nossa luta é clara e composta por compromissos concretos. É preciso coragem para enfrentar o debate e lutar, verdadeiramente, pelas nossas vidas.

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Márcio Santilli

‘Caminho do meio’ para a demarcação de Terras Indígenas

NINJA

24 de Março na Argentina: Tristeza não tem fim

Renata Souza

Um março de lutas pelo clima e pela vida do povo negro

Marielle Ramires

Ecoturismo de Novo Airão ensina soluções possíveis para a economia da floresta em pé

Articulação Nacional de Agroecologia

Organizações de mulheres estimulam diversificação de cultivos

Dríade Aguiar

Não existe 'Duna B'

Movimento Sem Terra

O Caso Marielle e a contaminação das instituições do RJ

Andréia de Jesus

Feministas e Antirracistas: a voz da mulher negra periférica

André Menezes

Pega a visão: Um papo com Edi Rock, dos Racionais MC’s

FODA

A potência da Cannabis Medicinal no Sertão do Vale do São Francisco

Movimento Sem Terra

É problema de governo, camarada