Foto: Mídia NINJA

Expostas em revistas e vídeos pornográficos sempre de forma a ressaltar tanto o genital com que nascemos quanto o paradoxo que é a presença do mesmo num corpo percebido como de mulher, esse mesmo genital sendo também o atributo que mais requisitam de nós na prostituição e, ao mesmo tempo, aquilo que impede o reconhecimento efetivo de nossas identidades nessa sociedade. Corpos que fascinam e causam medo, corpos que mexem com os desejos de gente que se acreditava imune aos nossos encantos, gente acostumada a nos ver como lixos, aberrações, corpos que explicitam que é possível existir de outras formas e que genital não é mais tão capaz assim (se é que um dia foi) de definir gênero, eis então o perigo de nossa existência, eis a razão de nos quererem mortas ou, no mínimo, segregadas.

Visíveis, demasiado visíveis. Corpos mortos em matérias sensacionalistas, corpos absurdos na prostituição e pornografia (o país que mais mata pessoas trans é também o que mais consome pornô envolvendo nossos corpos), o desrespeito ao nosso nome e gênero existindo justamente para que as demais pessoas possam continuar acreditando que o genital com que nasceram e o nome recebido ao nascer definem, de forma incontornável, toda e qualquer pessoa.

A transfobia tem, sim, sua razão de existir: aceitar a existência de pessoas trans não é somente nos reservar um cantinho ao fundo da sala, mas reconhecer que mulheres podem nascer com pênis, homens com vagina, mudando seus nomes inclusive, e reconhecer ainda que nem todo mundo deseja ser enquadrado nas etiquetas homem/mulher.

O reconhecimento desses direitos, no entanto, só pode se dar quando concluímos que genital já não dá conta de explicar o que uma pessoa é, o que uma pessoa pode se tornar. E qual o problema disso?

Pessoas que, por nascerem com pênis ou vagina, desde sempre existiram respectivamente como homens ou mulheres terão que buscar outra explicação para seu gênero, uma vez que vai crescendo o número de pessoas que nasceram com o mesmo genital e hoje se reivindicam de maneira distinta. Nossa existência, uma vez legitimada, põe em xeque a forma como as identidades funcionavam antes de nós, obrigando essa mesma sociedade a ter que pensar outras explicações para o que é um homem, o que uma mulher.

Mas a questão vai além. Lembro-me sempre dum diálogo que escutei no ponto de ônibus entre dois adolescentes, ambos com doze, treze anos no máximo: “pô, mas como é que eu vou saber se é mulher mesmo e não traveco?” A dúvida me fez sorrir. Ele queria ser hétero da forma mais tradicional, mas agora não basta seguir o instinto, é preciso cuidado. Sua dificuldade em diferenciar as duas categorias e a angústia que isso lhe causava, o que isso significa senão que mulheres cis e trans (cis é o contrário de trans, toda pessoa que não é trans) talvez já não sejam assim tão diferentes? Com os homens trans mais ainda, ou você jura que é capaz de perceber diferenças objetivas entre um Thammy Miranda e um galã global?

O desenvolvimento das tecnologias médico-farmacêuticas, mas também as reivindicações de liberdade que cada vez de modo mais firme emanam desses corpos, não mais tão dispostos a se sujeitarem a um modelo de feminino/masculino hegemônico, a um modelo de feminino/masculino opressor, tudo isso faz com que as diferenças entre esses corpos fiquem cada vez menos visíveis, identificáveis.

Não sendo mais tão simples nos diferenciar, pessoas xis começam a se perceber atraídas por nós, sua primeira reação ao descobrir quem somos sendo o choque: nova instância de perturbação.

Mulheres cis deixando de entender como insulto serem “confundidas” com travestis, travestis problematizando o “parece mulher”, o “nem dá pra perceber”, o “me enganou direitinho” com que tentam nos elogiar, daí a impossibilidade de nos manterem segregadas, vivendo às margens da sociedade apenas, daí também os homens trans brincando de sumir na multidão e de reinventar as masculinidades, pensa a sociedade que vai se construindo a partir disso!

Quinze anos do fatídico dia em que 27 travestis lançaram, junto ao Ministério da Saúde, a campanha “Travesti e respeito – já está na hora dos dois serem vistos juntos”, convertendo esse dia em Dia Nacional da Visibilidade Trans, hoje, 29 de janeiro de 2019, celebremos a presença cada vez mais massiva de pessoas trans na sociedade e celebremos também as transformações por que passa essa mesma sociedade ao se permitir conviver conosco, ao se permitir aprender conosco outras possibilidades de existir.

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

Colunista NINJA

Memória, verdade e justiça

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Renata Souza

Abril Verde: mês dedicado a luta contra o racismo religioso

Jorgetânia Ferreira

Carta a Mani – sobre Davi, amor e patriarcado

Moara Saboia

Na defesa das estatais: A Luta pela Soberania Popular em Minas Gerais

Dríade Aguiar

'Rivais' mostra que tênis a três é bom

Andréia de Jesus

PEC das drogas aprofunda racismo e violência contra juventude negra

André Menezes

“O que me move são as utopias”, diz a multiartista Elisa Lucinda

Ivana Bentes

O gosto do vivo e as vidas marrons no filme “A paixão segundo G.H.”

Márcio Santilli

Agência nacional de resolução fundiária

Márcio Santilli

Mineradora estrangeira força a barra com o povo indígena Mura

Jade Beatriz

Combater o Cyberbullyng: esforços coletivos