Foto: Mazur / catholicnews.org.uk

Eis que após quase 60 anos, a Igreja Católica tem um papa político, para além dos seus muros, sem fazer esforço para esconder esta condição. Aliás, as trajetórias de Francisco e João XXIII (1881-1963) são bem parecidas. Ambos foram eleitos para os chamados pontificados de transição com uma coincidência: a mesma idade ( 77 anos).  O antecessor de Francisco, Bento XVI também tinha uma idade avançada no momento da eleição, mas renunciou, uma situação inédita na história da Igreja Católica contemporânea, tornando-se “papa emérito”.

Os papados de transição são considerados aqueles pensados para estabelecer uma arrumação interna em tempos em que a Igreja se vê diante de contextos tão complexos que pretende mergulhar em si mesma. E aí resolve, segundo os especialistas, por papados mais curtos: elege-se alguém com idade mais avançada em um pragmatismo que pode surpreender em uma instituição motivada pelo discurso de razões espirituais. João Paulo II, por exemplo, foi papa por 27 anos.  Teve um governo com inovações, como uma maior intensidade no diálogo com credos fora do âmbito cristão; na geopolítica ficou conhecido especialmente pela participação no desmanche do bloco socialista, marcado pelo fim da URSS. Em seu pontificado a Teologia da Libertação ganhou projeção, mas também passou pelos mais duros ataques, especialmente via o braço da Congregação para a Doutrina da Fé, governada pelo então cardeal Joseph Ratzinger, que já como Bento XVI sucedeu o próprio João Paulo II.

Quando se elegem estes papas mais velhos espera-se muito pouco de sinalização para fora dos muros da Igreja. A escolha de Ratzinger pelo nome Bento foi apontado como o seu desejo de levar os católicos a uma redescoberta da espiritualidade, com atenção mais rígida ao cumprimento do magistério moral, sua área de estudos no campo da teologia. Mas, supreendentemente, o duro cardeal, soldado dos princípios de vigilância da Congregação para a Doutrina da Fé que, nós, brasileiros, assistimos tantas vezes em duelos com o teólogo Leonardo Boff, renunciou ao papado oito anos após a sua eleição. As razões, como tantas coisas nos bastidores do Vaticano, não estão explícitas, mas a versão mais corrente é que a temida cúria romana o fez desistir ao lhe negar reduzir seu poder.

Bento XVI parece ter sentido por demais os espinhos que estão espalhados nas “sandálias do pescador”, um dos nomes metafóricos para a posição do sucessor de São Pedro, como ensina a  Igreja Católica. Já Francisco parece que está bem disposto a travar seus combates. Uma surpresa na sucessão de Bento XVI, o então cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio já não figurava mais na lista de possíveis eleitos para o conclave atípico. Tinha entrado na relação de apostas do conclave anterior.

Quando surgiu na varanda da Basílica de São Pedro, de onde um novo papa é apresentado ao povo, especialistas em Vaticano sugeriram os indícios de que ali estava mais um João XXIII:  eleito para um  papado curto. Ao se revelar o nome escolhido, alguns avaliaram que mais uma vez se apresentava um projeto de espiritualidade. Neste caso, a de São Francisco (1182-1226). Veria-se com o tempo que do santo de Assis, o papa atual tem muito, mas no aspecto da rebeldia. Patrono do meio-ambiente e até chamado de “hippie”, São Francisco tinha a característica mística, inclusive por meio dos relatos de que no final da vida tornou-se um estigmata, ou seja, reproduzia em seu corpo as chagas apontadas como os mesmos ferimentos que marcaram o corpo de Jesus após a crucificação.

Mas se dedicava horas preciosas do seu tempo à oração, São Francisco, que era um jovem rico e deixou a opulência para trás, incendiou seu tempo cobrando compromisso com os mais pobres; chamava o sol e outros elementos da natureza de “irmãos”, mas incomodou com o seu modo de viver- sem nada que não fosse necessário, pedindo esmolas e abraçando leprosos- o clero de uma Igreja profundamente marcada pela riqueza dos seus líderes.  O catolicismo do tempo de Francisco e dos primeiros anos após sua morte esteve à beira de um cisma, depois concretizado no movimento liderado por Martinho Lutero no século XVI. Um quadro interessante desta história é traçado por Umberto Eco em O Nome da Rosa, um romance cheio de perspectivas.   

Habilidade   

O papa Francisco tem mostrado que, além de travar sua guerra de bastidores com a cúria romana- nunca um papa foi tão combatido abertamente nos últimos tempos como ele tem sido por setores conservadores da Igreja – usa suas margens de manobra, especialmente no jogo retórico. Em 2017, um casal homoafetivo de Curitiba recebeu a surpreendente carta da Secretaria de Estado do Vaticano onde se comunicava que o papa Francisco desejava felicidades pelo batismo dos filhos e invocava para a sua “família” a abundância de graças divinas. O papa reconhecendo como família a união de dois homens em uma Igreja que condena, em seu magistério moral (não é dogma e, portanto pode ser revisto) o amor fora do padrão heteronormativo? Mas foi este mesmo papa que em fevereiro deste ano chamou o feminismo de “machismo de saias”, embora dois meses depois tenho pedido desculpas pela declaração e assumido que se equivocou.

Teve o dedo de Francisco na tênue aproximação entre EUA e Cuba ainda no governo Obama, em 2014, e surpreende como nos últimos meses ele tem subido o tom a críticas  à  extrema direita na Itália, além de ter  enviado uma carta para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva preso em Curitiba, com palavras de consolo e trechos como o que dizia que “o bem vencerá o mal”, além de dedicar ao ex-presidente brasileiro suas orações . Para um chefe de Estado de uma instituição de peso como a Igreja Católica que, a despeito do crescimento dos movimentos neopentecostais em países como o Brasil ainda tem muita força, foi algo surpreendente, como mostraram as manifestações dos praticantes do ódio ao lulismo e ao petismo em variadas matizes nas redes sociais.

Batalhas

Francisco é jesuíta, uma congregação católica que é conhecida pela postura fortemente política. Ela foi uma das instituições mais poderosas no processo de colonização do Brasil, no século XVI. Uma esquadra com religiosos desta ordem acompanhou Tomé de Souza na missão de fundar Salvador em 1549, o projeto que fez Portugal sedimentar seu processo de exploração da sua mais lucrativa colônia. A congregação jesuíta dedica-se tanto ao ensino quanto à ciência. São jesuítas, por exemplo, que administram o Observatório do Vaticano, sediado na cidade de Albano, mas ainda com estreitas relações com Castel Gandolfo, a residência de verão dos papas. Foi para diminuir a influência jesuíta na corte portuguesa que o Marquês de Pombal perseguiu a congregação no século XVIII.  Francisco, inclusive, é o primeiro membro da instituição em toda a história da Igreja a assumir o trono de Pedro.

Assim, o papado de Francisco se aproxima bem mais das características do de João XXIII do que de seus antecessores mais recentes. Eleito para um curto reinado, João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, em 1962. A Igreja que emergiu do concílio instituiu desde as missas em línguas nacionais, no lugar do latim, com os padres agora voltados para o povo e não mais de costas, como passou a incentivar a participação de leigos e uma ação mais equiparada às questões do seu tempo. A Conferência de Puebla, no México, realizada em 1979 mostrava uma Igreja renovada após o Concílio Vaticano II. O seu documento começa com a Igreja latino-americana declarando a sua opção preferencial pelos pobres que aponta como indígenas, mulheres, negros e todos os marginalizados.

A Igreja latino-americana, após a Conferência de Puebla, foi fundamental em uma região que ainda nem havia respirado o ar livre das amarras do colonialismo e já estava em meio a ditaduras militares, com participação civil, que promoviam a barbárie. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral da Terra e as atuações individuais de bispos, como o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016) e o incansável e corajoso Dom Pedro Casaldáliga, dentre outros, fizeram a Igreja brasileira ganhar projeção na defesa de direitos. O MST é um forte herdeiro desta atuação política e organizada da Igreja Católica no campo. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) atuou como pôde na resistência à ditadura no Brasil e no processo de redemocratização com participação forte em outros segmentos como o combate à desnutrição no Brasil por meio da Pastoral da Criança.

Se não convocou um concílio, Francisco estará à frente do Sínodo para a Amazônia,  uma reunião de bispos, que vai acontecer no próximo mês em Roma para debater a questão da famosa floresta. O documento oficial para orientações sobre o encontro, composto com a participação de representantes das etnias indígenas da região, tem seções como “Identidades e clamores da Pan Amazônia” e a busca de compreender uma ecologia integral.

Óbvio que a Igreja tem interesses muito precisos em marcar território, especialmente em uma região atacada pela guerra de conversão dos missionários das mais diversas denominações evangélicas, especialmente os neopentecostais. Mas não deixa de ser um alento que uma instituição com um poder de ressonância universal finalmente resolva entrar para valer na briga e, de alguma forma, mais aliada aos movimentos sociais e com tentativas de respeito aos povos indígenas.

Francisco, assim como João XXIII, parece ter entendido que a Igreja Católica não está mais na condição de se portar como líder espiritual do mundo. Pelo contrário: ela perdeu prestígio, credibilidade e tem suas chagas internas, especialmente a longa história de abusos sexuais contra crianças, sobre os quais os últimos papas, inclusive Francisco, têm ainda uma postura tímida diante da gravidade do problema. Enfrentá-lo, como todos mais ou menos tem descoberto, requer entrar em uma guerra intestinal com consequências que podemos perceber nos ataques sofridos pelo papa que coincidem com uma outra postura mais dura em denunciar membros do clero que acobertam ou praticam esta violência inaceitável contra a dignidade humana.

A Igreja Católica Apostólica Romana tem angariado mais rejeição e antipatia nos últimos tempos. Mas os sinais de vigor político do atual papa, especialmente em um contexto brasileiro tão complexo, são animadores para a própria instituição, especialmente os segmentos mais progressistas. Francisco, com a sua disposição e habilidade para fazer política, é um aliado precioso. 

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