Foto: Lucas Pereira

Por Vanessa Santos Gonçalves

O século XXI trouxe em seu bojo significativas mudanças na instituição familiar, visto que desde os tempos greco-romanos a concepção que se tinha era de que o “pater famílias” conhecido como poder familiar era uma prática exclusiva do homem, e a mulher, por sua vez, era criada para desempenhar as obrigações de casa. Já o relacionamento entre pais e filhos foi marcado pelo poder do chefe que se valia de violência no tratamento com estes. Portanto, esse modelo patriarcal vem sendo reproduzido nos últimos séculos, e só recentemente discussões importantes e imprescindíveis sobre novas formações familiares têm sido trazidas à tona.

Falar de família é falar das concepções machistas e patriarcais que atravessam seus conceitos e divisão de papéis entre homens e mulheres no âmbito familiar. Falar de maternidade, é ser atravessada também por essas questões.

Independentemente do quanto já tenhamos avançado em certos diálogos a respeito dos papéis sociais impostos para homens e mulheres quando o assunto é criação de filhos, vale ressaltar que a figura “masculina” ainda permeia os debates sobre o tema. Em um país extremamente machista e patriarcal como o nosso, a concepção de família ainda está ligada às figuras do pai, mãe e filhos. Ou seja, família só é família se for a “tradicional”. Excluem-se as famílias homoafetivas, as mães solo, os avós que criam seus netos, e diversas outras configurações familiares.

O peso colocado em cima da mulher sobre sua função maternal é a premissa para o controle de seus direitos. Diante de tantos retrocessos discursivos (por parte de governantes do país) e de direitos, torna-se fundamental debater essa constituição familiar ainda invisibilizada: as famílias homoafetivas.

No entanto, na atual conjuntura política brasileira, deve-se reforçar que ser mulher, homossexual e mãe numa sociedade em que discursos de ódio são constantes afirmativas em representantes do Congresso, exige muita luta e resistência. E foi a partir de discussões como essas que chegou até mim o livro MAMA. Abaixo segue a sinopse que recebi:

Um relato de maternidade homoafetiva que aborda de maneira leve todas as fases do projeto maternidade de Marcela e Melanie, desde a conversa entre as duas, que deu o pontapé inicial nesse plano, passando pela decisão de quem seriam os óvulos e em que barriga eles seriam implantados, até a decisão de que Marcela faria um tratamento para também amamentar os gêmeos Bernardo e Iolanda. Ao amamentar seus filhos, mesmo sem ter sido ela a gestar, Marcela literalmente peita, num equilíbrio entre força e delicadeza, os preconceitos e intolerâncias da sociedade. Momentos como o casal se conheceu e reação de pessoas próximas à notícia da gravidez também fazem parte da obra.

A partir dos debates acerca do tema, e das novas constituições familiares, há de se pensar como as mães em relacionamentos homoafetivos são atravessadas por essas questões e quais informações que elas realmente têm acesso. Marcela Tiboni, 36 anos, e Melanie Zuccherina, 29 anos, que estão juntas há 5 anos e sonhavam ser mães, começam o processo de inseminação in vitro. Mel engravidou em janeiro de 2018. Ao tomarem essa decisão, o casal sentiu uma enorme dificuldade em encontrar informações sobre todo o processo, enfrentaram preconceito nas redes sociais e medos permanentes sobre como a sociedade acolheria seus filhos.

E ao ler o relato das mães sobre todo o período da maternidade em que estão vivendo, o que chama a atenção é como a questão “quem exercerá a figura paterna” é uma constante nas “preocupações” dos guardiões da família tradicional brasileira. Em uma entrevista que concedeu, a autora ao ser indaga sobre os preconceitos enfrentados durante o processo de gestação, responde o seguinte:

“O preconceito através das mídias sociais são os mais comuns. Comentários que envolvem religião e a ausência masculina são as que sempre aparecem. Coisas como ‘Deus criou o homem para se relacionar com a mulher e vocês quebraram as regras de Deus’, ‘Vocês usam um momento lindo que é a maternidade para esfregar na cara das pessoais a homossexualidade’, ‘Qual das duas é o macho da relação?’, ‘Se não tem pai qual das duas deu o sêmen?’, entre outros comentários que tentam nos diminuir ou humilhar”.

Foto: Arquivo Pessoal

Curioso é que não se veem essas preocupações permearem os debates dessas mesmas pessoas quando o assunto é o abandono paterno. Ou seja, a figura paterna/masculina só é uma premissa discutível se for para questionar a configuração familiar homoafetiva.

Um fato que devemos considerar quanto à importante desconstrução em relação aos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres, no que diz respeito a responsabilidades na criação e educação dos filhos, é em relação ao modo como o casal homossexual vai desempenhar a função materna e paterna. Ou seja, como será feita essa divisão em relação aos cuidados necessários à criança. Vale ressaltar que há uma tendência natural dessas famílias em desvincularem sexo e maternidade/paternidade. E a experiência vivida por Marcela e Mel, e registrada em livro, traz para debate todas essas questões.

Ainda quando questionada sobre as motivações para a escrita do seu livro, Marcela afirma: “Eu nunca havia escrito livros, e foi a ausência de livros sobre o assunto da maternidade homoafetiva que me fez começar meu próprio livro. Para mim era inadmissível que em pleno ano de 2017 não houvesse um único livro sobre este assunto. Além disso o livro foi a minha gestação, vivi nas páginas e capítulos a minha gravidez, escrevia ali meus medos, angústias, sensações, dúvidas, frases que ouvia, preconceitos que vivia, entre outras sensações que envolviam a minha descoberta de ser mãe sem gestar”.

Nesse sentido, todos os atravessamentos que envolvem o “vir a ser” mãe são colocados em discussão. Para a autora, escrever o livro também foi um modo de gestar os filhos. As questões sobre família e suas configurações podem ser repensadas a partir das reflexões propostas. Marcela viu na dificuldade de encontrar informações e nos problemas, preconceitos e medos enfrentados, a potência criadora da escrita. E foi por meio dela que ela também quis ajudar a outras famílias homoafetivas, mulheres e mães, produzindo o relato da sua trajetória junto a sua companheira na concepção e nascimento dos filhos:

“O livro é um relato, o relato mais sincero e verdadeiro daquilo que vivi sendo mulher, lésbica e na busca por ser mãe. Nas quase 200 páginas conto como conheci minha mulher, como começamos a namorar, como nos apaixonamos, em que momento decidimos casar e ter filhos. Mesclada à nossa história de amor vem a história da maternidade, os processos de procedimentos que duas mães passam para engravidar, o banco de sêmen, os exames, as ansiedades, a gravidez em si e o parto. E dá um certo destaque para o fato de que eu, mesmo sem gestar, optei por amamentar meus filhos. Contando o protocolo pelo qual passei para conseguir produzir leite e amamentar os bebês”, declara Marcela.

Como é ser mulher, lésbica e mãe numa sociedade machista como a nossa? Quais os atravessamentos e medos? Quando indagada a respeito, a escritora afirma que o medo é do outro, o que vão falar e como vão falar com seus filhos. Que tipo de preconceito ou agressões verbais terão de ouvir? Conclui a fala dizendo: “não podemos mudar a sociedade de uma vez, mas podemos educar crianças mais bem preparadas para mudar o futuro”. Destaco e finalizo com outra fala da Marcela:

“Escrever um livro desse, para mim, é mais do que contar minha história e da minha família. Ele é um ato de militância, assim como viver a maternidade também o é nos dias atuais. Além disso, durante todo a nossa caminhada para nos tornarmos mães, começamos a interagir em nossas redes sociais e em fórum específicos e ver que existem muitas dúvidas sobre o tema. Esse não é um livro técnico, muito pelo contrário, afinal, não tenho formação técnica. É um relato e acredito que ele elucida muitas questões e pode contribuir para a construção de uma série de outras famílias”, explica Marcela.

E seguimos juntas na luta, desconstrução do patriarcado e resistência!

Informações sobre o livro:
Livro: Mama: um relato de maternidade homoafetiva
Autora: Marcela Tiboni
Ilustrações: Giovanna Poletto
Editora: Dita Livros

Vanessa Santos Gonçalves tem 31 anos, graduada em Letras/Literatura. Atua há doze anos na área da Educação, mãe, educadora, ativista social na cidade de Itajaí (SC), militante e feminista.

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