Eu sempre soube que gostava de mulheres. Mas foi cedo também que aprendi que isso era motivo de piada. Aos 11 anos, durante o intervalo da escola, um garoto (branco hétero) entrou na sala e viu uma amiga minha sentada no meu colo. Espalhou pra escola toda que a gente estava transando. Foi então a era do bullying. Eu não era apenas uma das poucas pretas do colégio, mas agora também era sapatão.

Eu entendi então que era isso, não havia como fugir disso, eu era sapatão.

Não importa se eu tinha desejo por homens também, eu era sapatão.

Primeiro ano do ensino médio, 15 anos. Me interesso por um cara. Ele se interessa por mim. E então começamos a namorar. Só que minhas amigas, minhas companhias nas matérias eletivas, meus interesses, parte de como eu vestia – era tudo “de sapatão”. Com certeza não a caminhoneira clássica, mas a mana que negava os vestidos, escondia o corpo (alô gordofobia!) e tinha cabelo colorido. Certo dia uma das garotas com quem eu andava percebeu que eu namorava um cara. E disparou na rodinha “pra quem se dizia lésbica há um mês né… Tá aí, louca por um cara”. Tomei aquilo como extrema ofensa, eu louca por um cara. Eu, sapatão, louca por um cara.

Na época eu já fazia terapia, em quadro clínico depressivo. Nas sessões eu estava perguntando pra minha psicóloga porque eu tinha dificuldades de me relacionar sexualmente com esse cara. Eu tinha desejo, vontade, mas me faltava coragem. Terminamos depois de um ano de selinhos sem emoção. Meus próximos relacionamentos foram com garotas, com elas não havia inibição sexual, apesar de parte de mim ainda estar enfrentando o fato de que o selo de lésbica futurista não era mais meu.

Começo a ler sobre bissexualidade enquanto conheço outro cara. Entendia mais o meu corpo, sabia o que queria fazer com ele e aos 17 anos, quis mais. Quis demais. Terminou comigo no nosso aniversário de dois meses porque eu só queria beijá-lo e não o amava. Hoje sei que só namorei com ele porque era isso que se fazia na minha cidade quando você queria dar pra alguém.

Dois meses depois conheci o típico “amor da minha vida” adolescente. Ela era nordestina, morava em São Paulo, judia. Eu a amava profundamente, fizemos planos de morar juntas quando entrássemos na faculdade. Descobri com ela o que era sexo, o que era intimidade emocional, o que era entrega. Apesar disso, foi um relacionamento turbulento, ela se sentia profundamente culpada por gostar de mulher, temia o castigo divino e vivia tentando inventar desculpas pra não se assumir. Vez ou outra me contava que ficava com garotos pra provar que não era lésbica. Terminamos depois de dois anos.

Segui minha pesquisa sobre bissexualidade. Parecia mais próximo do que eu sentia, mas culturalmente não me identificava. Pensei que era um problema da minha formação – hétero-compulsória, vinda de cidade provinciana. Deixei de lado.

Bandeira do Orgulho Pan – Rosa: Atração pelo feminino. Amarelo: Atração por não binários, agêneros, gênero fluídos (e tudo mais) Azul: atração pelo masculino.

De qualquer forma, eu estava focada em outra coisa: perder a virgindade. Já havia transado com outras garotas, mas na minha cabeça enquanto eu não tivesse sexo com penetração vaginal com um homem, eu ainda era virgem. Me faz rir e chorar escrever isso hoje, ao perceber estas e outras situações lesbofóbicas as quais me submeti.

O problema é que eu não conseguia atrair homens. Eu não me sentia interessante para eles, nem fisicamente, nem emocionalmente. Eu já morava em casas coletivas, na iminência de colocar a NINJA no ar quando uma as mulheres da comunidade me deu o conselho que mudou a minha vida: “Não é porque você é assim que você não merece amor”. Assim significava um monte de coisa que eu não tinha feito as pazes ainda. Assim gorda. Assim preta. Assim não-hétero.

Ao fim, transei com um cara. Foi bom. Bem bom. Transei com outras meninas. Foi bom, bem bom. Mesmo assim, sair do armário como bi parecia distante. Achei que quanto mais eu lesse, mais eu me identificaria, mas não bateu. Depois de um ano engatei um namoro com um cara. Tivemos uma relação intensa, um casamento, aberto. Me relacionei com outras pessoas no meio tempo, em sua maioria mulheres. Pensei em deixá-lo por uma delas, mas ela não quis, rs.

O importante é que essa foi a época de superar um trauma. Nas casas coletivas eu estava num lugar onde eu poderia ser eu mesma. Então eu me aprofundei nos símbolos que já eram meus. Eu sou uma mulher. Eu sou uma mulher negra. Eu sou uma mulher negra gorda. E ao longo do tempo, mais do que ser estas coisas, eu as admirava. Eu me achava bonita, sexy, atraente. E achava pessoas parecidas comigo bonitas, sexys, atraentes. E ali, nas pesquisas de pessoas por quem eu me interessava, eu descobri o termo pansexual. Parecia doido demais. Deixei de lado.

2015, 25 anos. Encontro Latinoamericano de Mulheres, Cochabamba, Bolívia. Estávamos dividindo entre nós quem faria a mobilização de cada um dos grupos de mulheres e eu fiquei com diversidade sexual. Quando me vi preparando para falar, entrei em pânico. Falaria o que, contaria o que, com que moral eu convocaria essas mulheres para falar de suas sexualidades? Então me despi na frente delas, desde “achei que não merecia os homens” até “sou uma mulher bissexual”. Terminei em lágrimas e postei a fala no meu facebook. Foi, para minha família e círculo estendido de amigos, a minha saída do armário. Me lembrei então que meu pai já havia demonstrado preocupação para minha mãe quando era mais nova – e se ela for lésbica? A resposta nunca veio.

Ao fim, a fala pública foi um teste/comprovação, eu já sabia que não me identificava como uma mulher bissexual, mas ia falar o que? Numa sala repleta de feministas, das campesinas às trans, ia dizer o que?

Volto pra mesa de estudos. Volto a ler sobre pansexualidade. Paro porque meu preconceito não engolia o “gosta de pessoas”. Era hippie demais pra mim, cirandeiro demais pra mim, milenium demais pra mim. Mesmo assim, meus quatro planetas em capricórnio berravam por organização. Se não é isso, é o que?

Paguei minha língua nos próximos meses. A começar porque finalmente entendi que penetração não era uma prática sexual que me apetecia. Desde sempre não sentia prazer naquilo e honestamente, era uma performance que estava me começando a deixar ansiosa, a ponto de levar a dor. E quando isso sai da equação, os papéis de masculinidade são colocadas à prova. Se não é pra meter, pra que serve o homem (e, convenhamos, algumas mulheres)?

Depois, outra constatação – dos aplicativos de pegação, aos likes no instagram até os crushs da vida real – entendi que meu “gosto” não era linear. Mulheres cis masculinazadas , homens cis afeminados, pessoas não binárias, pessoas trans, dentro e fora do padrão magro-branco-heteronormativo. De novo, todas as que pessoas que eu aceitei depois que eu me aceitei.

Aí é que está, eu de fato, gostava de pessoas. No sentido que a genital delas não era o centro da minha atração sexual e romântica. Sexo é muito importante pra mim, ainda é parte determinante na minha autoestima, mas ter quebrado com a forma normativa de transar me aproximou muito mais de mim. Comecei a entender que me encaixaria numa sexualidade que conversasse com o conceito de quebrar os padrões. Minha existência quebra o padrão do que é desejo (não do que é fetiche!) e logo quero amar pessoas que entendam isso.

Não me restou nada a não ser me conciliar e me orgulhar de ser uma mulher pansexual.

Arte: Carol Rosseti

E de lá pra cá tem sido uma estrada louca. De ouvir de mulheres lésbicas que até ficariam comigo, mas não me namorariam porque eu era promíscua e insaciável. De ouvir de homens que tudo bem, porque eles não tinham ciúme quando eu ficava com mulheres, só com homens. De pessoas LGBT que não acreditavam porque eu nunca tinha ficado publicamente com uma pessoa trans. De pessoas em geral me dizendo que isso era só uma frescura pra não falar bissexual.O que me faz perceber que, mesmo que eu não seja bissexual, vivemos os preconceitos e privilégios parecidos.

Apesar de tentar educar as pessoas (afinal, pansexualidade é um termo que se “populariza” no fim dos anos 90 e tem sua bandeira lançada no tumblr, não é minha gente), o princípio é entender que a pansexualidade pode ser vivida de várias formas, muda a cada pessoa.

Para alguns, não há diferença entre bissexualidade para pansexualidade. Enquanto alguns entendem que a segunda não reconhece diferença entre gêneros, outros pensam que a primeira pode sentir graus diferentes de atração a depender deles. Mas este texto não é sobre uma determinação definitiva sobre a diferença entre estas duas sexualidades (mas este talvez seja).

Este é o texto para contar que a minha trajetória não foi óbvia e que eu vivo a sexualidade na qual eu me vejo.

Procuro desconstruir meu desejo da mesma forma procuro me desconstruir. Pansexualidade para mim é sobre amar gordos, pretos, indígenas, deficientes, trans… Também é sobre ser classe média e desejar pessoas pobres (não o estereótipo de “cafa”, mas sim os que são julgados esteticamente desagradáveis), é sobre ver marombados como pessoas e não como “gado”, é sobre não achar um homem cis menos atraente por ele ser afeminado, ou uma mulher trans menos atraente por ter “traços masculinos”, é sobre não ridicularizar práticas sexuais que fujam à regra, é sobre dar valor a todos os corpos – desde que eles não me queiram morta.

Isso não quer dizer que bissexualidade não pode ser tudo isso também.

Esta não é uma carta de juramento, vocês ainda podem me ver com um homem branco hétero padrão (deixemos o debate do relacionamento inter-racial para outro momento).

Esta é uma carta de amor a mim mesma, a aceitar minha sexualidade com todas suas complexidades possíveis.

Esta é uma carta de uma mulher pansexual.

Eu, uma mulher negra gorda e pansexual.

Obs: Ponham a porra da minha letra na abreviação de vocês, obrigada.

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