Foto: STF

Uma reflexão séria sobre o relacionamento do Estado brasileiro com os povos indígenas no decorrer da história requer necessariamente reconhecer a existência de um poder tutelar e verificar as suas mais variadas formas de exercê-lo. Durante um bom tempo, uma dúvida pairou sobre se os indígenas eram ou não seres humanos. Eles foram elevados à categoria de humanos somente por intermédio de uma bula papal reconhecendo que os indígenas tinham alma e, portanto, eram passíveis de evangelização. O resultado disso foi trágico. Ficaram submetidos ao regime tutelar, sendo tratados juridicamente como relativamente incapazes para os atos da vida civil.

Imposto ainda no Brasil-Colônia, o regime tutelar continuou presente na legislação republicana com guarida legal até os dias atuais, já que o Estatuto do Índio, de 1973, ainda não foi revogado expressamente.

Os caciques mais velhos têm viva na memória a chamada guia de trânsito, um documento expedido pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) sem o qual o indígena não poderia deixar sua aldeia. Ou seja, o indígena era tratado como criança que dependia de seu tutor para praticar qualquer ato, inclusive o de ir e vir.

No âmbito do judiciário, a tutela sempre esteve presente, e seu modo de exercê-la acarretou muitos prejuízos aos povos indígenas. Basta lembrar que foi somente com a Constituição de 1988 que os “índios, suas comunidades e organização” tiveram reconhecido o direito de participar dos processos judiciais, defendendo seus interesses. Até então, essa prerrogativa ficava restrita aos procuradores da agência indigenista estatal.

No próximo dia 06 de fevereiro, estará na pauta do Supremo o julgamento do Agravo Interno na Ação Cível Originária N.º 2323, de relatoria do ministro Alexandre de Morais. Este processo, em síntese, é uma ação interposta pelo Estado de Santa Catarina contra a União Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai), visando à nulidade do processo administrativo que culminou na edição da Portaria Declaratória n.º 771, de 18 de abril de 2008, do Ministério da Justiça.  Essa portaria deixa clara a posse permanente dos grupos indígenas Guarani Mbya e Nhandeva da Terra Indígena Morro dos Cavalos. É o típico caso no qual os “índios, suas comunidades e organizações” não foram citados para compor o pólo passivo da ação.

Ou seja, trata-se de uma ação, em que se discute o direito fundamental da comunidade indígena. Mas, em momento algum, teve-se a preocupação de ouvir a comunidade.

Por isso, em 15 de maio de 2015, por meio de advogado próprio, os indígenas requereram ingresso na ação, na condição de litisconsórcio passiva necessária. Passado mais de um ano sem que seu pedido sequer fosse analisado, no dia 14 de outubro de 2016, o advogado apresentou contestação e reiterou seu pedido de ingresso no feito. E, na data de 05 de fevereiro de 2017, a Comunidade Indígena de Morro dos Cavalos renovou o pedido de ingresso nos autos.

Somente no dia 26 de março de 2018, o ministro Alexandre de Morais decidiu pela não admissão da comunidade indígena como assistente litisconsorcial, mas, sim, como assistente simples. São figuras jurídicas que trazem impacto significativo no processo e nos resultados da ação. No entendimento do ministro, o processo que discute a regularidade do processo demarcatório de terra indígena afeta indiretamente a comunidade indígena, tendo em vista que a União e a Funai já estão presentes na ação, justificando, assim, seu ingresso apenas na condição de assistente simples. Em outras palavras, numa ação em que se discute se você poderá ou não habitar num determinado local originário, você não pode participar decisivamente, sob a justificativa de que o resultado daquela disputa judicial não o afetará diretamente. Nota-se que, além de ser uma interpretação equivocada e sem levar em consideração o significado do território para os povos indígenas, vem carregada de uma visão tutelar que faz crer que a simples presença da Funai no processo já supre a ausência da comunidade indígena nos autos.

Assim, o exercício do poder tutelar tem sido instrumentalizado desde tempos imemoriais. São expedientes estatais da máquina pública promulgados sem levar em conta a vontade da comunidade indígena, sem ouvi-la.

É a turbação do exercício da cidadania cultural dos povos indígenas, na ânsia de se colocar na posição de quem sabe o que é melhor para os indígenas, sem ao menos consultá-los. Isso não é casual. Há pouco tempo atrás, no mesmo Supremo, ouvimos da boca de outro ministro a afirmação de que ele era profundo conhecedor da causa indígena, pois já havia jogado “futebol com índios”.

Para se garantir o acesso à Justiça aos povos indígenas, é fundamental romper com os paradigmas tutelares, que se baseiam na relação colonial para subjugar os povos indígenas.  Esse tipo de distorção justifica, de maneira absurda, a dominação e a cooptação dos indígenas pelos agentes estatais.

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