Tenho um filho de 16 anos. Vicente. É ele quem me apresenta os rappers. Dezenas de jovens comprometidos com a sua comunidade tentando traduzir em palavra cantada a tragédia social do Brasil. Eles são a voz do gueto rebelde. Impressionante a força dessa música entre os jovens em todo o país!

Há grande quantidade de bons tradutores do sentimento de indignação, raiva e demanda por justiça existente na juventude periférica. Sabem que estão sós, assumem-se negros e compreendem que vivem uma guerra de domesticação ou extermínio.

É urgente que a luta pela democracia incorpore como uma questão central o fim do extermínio, dos massacres e das chacinas nas periferias das nossas cidades. É urgente que a polícia se comporte civilizadamente e com respeito àquelas pessoas que ali moram. É preciso urgentemente dialogar com esses artistas – e com os demais sambistas, funkeiros, escritores etc. – dessas comunidades, como um primeiro movimento para transformar os direitos das populações segregadas nas periferias e favelas das nossas cidades em uma das prioridades da luta democrática. É urgente dar um basta, um ponto final na barbárie policial. Claro que muita coisa foi feita nos últimos anos para reduzir as desigualdades, para se fortalecer a cidadania, aumentar o poder aquisitivo dos mais pobres, criar uma institucionalidade receptiva aos direitos sociais de todos os brasileiros e brasileiras. Mas as chacinas permaneceram e continuaram a crescer, os direitos mais elementares dessas pessoas continuaram a ser desrespeitados.

Tudo que foi feito ainda é insuficiente.

Um passo importante que pode ser dado é incorporar nas prioridades políticas a questão dos direitos das periferias com tal força que os que aí vivem sintam que não estão sós, que todos os que lutam por mais democracia estão juntos e esse é o caminho.

Esse diálogo não será fácil. As dificuldades começam na linguagem. Quem convive com a possibilidade de um encontro com a morte a qualquer momento tem outras demandas e muitas urgências. E outra linguagem.

Arte Renatinho da Silveira

Arte Renatinho da Silveira

A classe média, mesmo os seus rebeldes, não chegam junto desta realidade. O sistema nos divide, nos separa, e invisibiliza o mundo dos excluídos. Mas pode chegar, um dia vai chegar! Esse é o papel da política transformadora.

Quando vão deixar de ser apenas expressão da cidade partida? No dia em que o outro lado da cidade se emocionar às lágrimas com uma criança morta pela violência policial; com o relato de um pai ou de uma mãe que, tomando um exemplo concreto, estava dando o café da manhã para sua filha de menos de dez anos antes de levá-la para a escola e, de repente, um tiro de fuzil atravessa a parede do barraco e atinge a cabeça dessa criança.

A polícia e os traficantes estavam trocando tiros como se não existissem pessoas ali, como se elas fossem apenas parte do cenário. No caso, a bala saiu do fuzil de um policial.

As coisas vão mudar no dia em que os moradores dos outros bairros da cidade entenderem o que significa bala perdida. No dia que sentirem como inaceitável que a polícia entre em um bairro pobre, em uma favela, na periferia, atirando e desrespeitando os que ali moram. No dia que vierem a chorar por vidas terminadas em chacinas que todo mundo sabe quem pratica, mas todos fingem não saber e nem ver.

As coisas vão mudar quando reconhecermos que os direitos que nos protegem do relento, da fome, da humilhação, da ignorância e da morte violenta são as mesmas garantias devidas a todos os brasileiros e brasileiras.

Quando tivermos nossa cidadania plenamente desenvolvida ao ponto de não nos dividirmos entre os que merecem viver e os que podem morrer de fome, esgotamento, preconceito, bala perdida ou por qualquer outra injustiça social.

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Arte Renatinho da Silveira

Quando tivermos a grandeza de nos perceber como uma nação de iguais, cessará a indiferença. E todos construiremos a narrativa de nossas vidas sob a mesma gramática cidadã, fortalecendo a diversidade humana e cultural que deve mais nos unir, pelo respeito e pela solidariedade, do que nos segregar pela exploração, pela exclusão e pela violência.

Essa compreensão cobramos dos indivíduos, mas ela deve ser exigida principalmente das instituições do Estado brasileiro e dos partidos políticos, em particular.

Refiro-me principalmente aos partidos de esquerda e aos que estão comprometidos programaticamente com a democracia, pois são os que se oferecem para dirigir o Estado de forma a superar seu caráter opressor e mantenedor do status quo. Um olhar mais apurado perceberá que os operadores da política no Brasil se dividem entre os que são herdeiros do sistema escravagista e os que lutam para superá-lo.

Precisamos pensar em um Estado formado e formador de valores democráticos, encarregado de oferecer educação, de criar as condições para o acesso pleno de todos à cultura, encarregado de fazer justiça, recolher impostos, distribuir riquezas, garantir qualidade de vida e outros direitos a todos os cidadãos sem distinção. Por isso, partidos precisam ter ideologia e devem ser fiéis aos seus ideais quando ascendem ao poder.

No último dia 31 de março, 53 anos depois do golpe de Estado que nos impôs uma ditadura cruel, refletindo sobre a persistência e recrudescimento da violência praticada pelo Estado, alertei para a necessidade de ouvirmos as denúncias que nos fazem os artistas da periferia. “Na dúvida, escutem os rappers”, escrevi nesta Mídia NINJA. Minha mensagem se dirige especialmente aos partidos de esquerda, e aos demais democratas, cuja linguagem e prática estão afastadas da realidade daqueles que estes partidos almejam representar.

A direita é caso perdido: justifica as cruéis desigualdades sociais, tenta naturalizá-la, culpabiliza os pobres e excluídos. E, prega como saída armar a população. Lembro que muitos são financiados pelos fabricantes de armas.

No século 21, as lutas emancipatórias não serão feitas por uma minoria detentora do controle da narrativa e dos instrumentos políticos em nome de uma maioria silenciosa, legitimadora de dogmas e estratégias partidárias de ascensão ao poder.

No século 21, as tecnologias da comunicação ampliaram o acesso à informação e abriram canais de expressão em proporções nunca vistas na história da humanidade.

Hoje, não só os jovens da periferia, mas os jovens em geral, as mulheres, os indígenas, os quilombolas e outros grupos sociais já não podem ser interditados por um controle centralizado da narrativa.

É preciso ouvi-los e, mais do que isso, é preciso abrir a estes grupos sociais e humanos os canais de participação na vida social em geral e nas organizações partidárias; pois na vida política do Brasil eles já são protagonistas em suas lutas diárias por emancipação, respeito, igualdade de direitos e liberdade.

Arte Renatinho da Silveira

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