Foto: Mídia NINJA

Quando vemos a defesa de Dilma Rousseff desmontar, argumento a argumento, de forma clara e precisa, os dois pretextos legalmente previstos para a destituição da presidente, sobra o absurdo kafkiano que empresta o título ao filme.

Não há Estado de Direito democrático sem justiça, sem sistema judicial sem uma boa dose de formalismo que o torne garantista. Na ordem inversa os fatores não se relacionam exatamente da mesma forma. É isto que a realizadora Maria Augusta Ramos tenta mostrar n’ “O Processo”, a longa metragem brasileira premiada pelo público na última edição do IndieLisboa.

“O Processo” é um documentário gravado nas entranhas do impeachment de Dilma Rousseff. Não é uma narrativa retrospetiva sobre o golpe, romanceada sequencialmente a partir do desfecho para chegar ao início. Tão pouco pretende contar a história do país que o gerou, embora nos deixe pistas sobre os seus impulsos mais profundos e sobre a autocrítica que o PT terá sido capaz de fazer desde o primeiro momento.

Sem perder de vista a polarização da sociedade brasileira sentida nas ruas, a singularidade do documentário é o seu limite assumido: relatar o impeachment a partir dos bastidores de Brasília. O desafio é fazê-lo partir da montagem de fragmentos de horas e horas de gravações, sejam cenas mais conhecidas, como a votação na Câmara dos Deputados, ou filmagens exclusivas das reuniões do gabinete que preparava a defesa de Dilma Rousseff.

O resultado é o retrato cru de “um jogo de cartas marcadas”. Quando vemos a defesa de Dilma Rousseff desmontar, argumento a argumento, de forma clara e precisa, os dois pretextos legalmente previstos para a destituição da Presidenta, sobra o absurdo kafkiano que empresta o título ao filme. O cumprimento das regras formais como cortina de fumo para a ausência de um verdadeiro direito de defesa, o Estado de Direito reduzido à legalidade protocolar.

Neste filme não há entretenimento, nem música, nem narração, nem sequer legendas para identificar os senadores, juízes, deputados, assessores que se vão sucedendo na tela. Nem seria preciso. Cena após cena, há um puzzle que se vai montando tendo como peças os factos públicos. A chantagem do Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha ao PT, o processo de impeachment como retaliação, o diálogo entre os organizadores do golpe sobre a Lavajato:

MACHADO – É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.

JUCÁ – Com o Supremo, com tudo.

MACHADO – Com tudo, aí parava tudo.

JUCÁ – É. Delimitava onde está, pronto.

Ao desmontar a farsa jurídica, “O Processo” mostra o impeachment como realmente aconteceu e como ficará para a História: um processo político para destituir de forma ilegal uma Presidente eleita por voto universal. Um golpe.

Uma das virtuosas subtilezas do documentário é trazer luz sobre a hipocrisia. Fica evidente que à data já existia uma percepção geral sobre a natureza não-jurídica (e, portanto, ilegal) da destituição. Do lado da acusação, Janaina Paschoal, a jurista evangélica contratada para fundamentar o pedido de impeachment, esquece várias vezes os “crimes de responsabilidade” para entrar em transes discursivos cheios de moralismo, apreciações políticas e ódio ao PT. Do lado da defesa, os dirigentes do PT questionam várias vezes se defesa jurídica terá outro valor além do tempo ganho para a resistência política.

Como é que alguém se defende num sistema em que a superfície e o núcleo não são feitos da mesma matéria? Um sistema que é alternadamente jurídico ou político conforme der mais jeito à acusação? A pergunta é corrosiva para ideia de que vigora no Brasil um Estado de Direito democrático.

Na distopia de Kafka, Josef K. é arrastado para um sistema judicial labiríntico, preso por dois agentes não identificados a mando de uma qualquer autoridade desconhecida para ser julgado por um crime que nunca se chega a nomear. Tal como n’“O Processo” brasileiro, é um jogo de cartas marcadas em que cumprimento das formalidades jurídicas por parte da acusação serve apenas como instrumento de alienação.

A versão real, enquanto enredo, é brilhante. O problema é não ser ficção. No final do “Processo” de Kafka, não há resposta para a pergunta “inocente de quê?” No caso de Dilma Rousseff, ainda que se inverta a pergunta, “culpada de quê?”, a resposta será sempre a mesma, trágica: até pode ser de tudo, menos dos crimes que levaram ao seu afastamento.

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