Evento em São Paulo une ativistas e pesquisadores sobre o tema para ampliarem luta continental

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O Brasil possui atualmente cerca de 720 mil pessoas encarceradas, e ocupa a terceira posição na lista de maiores populações carcerárias do mundo, superado apenas pelos Estados Unidos, com 2,1 milhões, e China, com 1,5 milhão de presos. Esse cenário aponta a gravidade do encarceramento em massa, que atinge principalmente a população negra e de baixa renda.

No último dia 11, no centro de São Paulo, o debate “As lutas anti-prisão no Brasil e nos EUA” reuniu pesquisadores e ativistas, na livraria Tapera Taperá, para propor alternativas ao aprisionamento, com o chamado abolicionismo penal, que consiste em “construir e não destruir” o sistema atual, conforme aponta a norte-americana Micol Seigel, pesquisadora da Universidade de Indiana.

Além disso também houve o lançamento da pesquisa “A Luta Antiprisional no Mundo contemporâneo: estudo sobre experiências de redução de população carcerária em outras nações”, realizado pelo pesquisador Rodolfo de Almeida Valente em parceria com a Pastoral Carcerária.

“O cárcere não tem a ver com o crime. O cárcere é usado para resolver problemas que os governos querem esconder, como a pobreza, a desigualdade social, a falta de assistência a pessoas com doenças mentais, etc. O crime é a justificativa”, afirma Seigel.

A pesquisadora norte americana diz que abolir as prisões por alternativas que dê liberdade, ou mesmo atuar na diminuição ou paralisação do encarceramento, não é uma utopia, nem teoria, e é possível colocar em prática, basta haver vontade política para executá-la.

O relatório da Pastoral Carcerária vem com o objetivo de mostrar como essas experiências não só são possíveis como estão sendo testadas em diversos locais. O estudo trouxe os resultados da prática em quatro locais: Califórnia (EUA), Portugal, Rússia e Chile.

“Partindo-se das premissas de que as estatísticas carcerárias são produtos de decisões políticas e de que os projetos de reforma, em si, são parte do mecanismo de reprodução (e muitas vezes de expansão) do dispositivo carcerário, as experiências dos diversos países e estados que adotaram “políticas de desencarceramento” serão abordadas não somente do ponto de vista das mudanças institucionais, mas com ênfase, sobretudo, no complexo de relações e tensões sociais que constituem a base dinâmica das “decisões políticas”’, relata Rodolfo na introdução do relatório.

Essa tensões sociais foram mostradas na sua forma mais dura a partir da vivência da ativista Miriam Duarte Pereira, da Associação de Amigos e Familiares de Presos (AMPARAR) que deu o seu depoimento durante o encontro.

“Filho de pobre, na periferia, a gente só espera [morte e prisão]. Eu mesma perdi três filhos assassinados pela polícia”, conta a ativista. “Estão matando os nossos filhos. Não é justo a gente colocar eles no mundo, dar amor, e ele acabar nesse sistema. Eles dizem que a gente não cuida, mas no sistema eles os matam. O estado tem que responder por isso, ir para a cadeira dos réus. Não é justo o que fazem com a gente na periferia”.

Atualmente trabalhando no CEDECA (Centro de Defesa da Criança e Adolescente), Miriam atua na denúncia de casos de maus tratos nas penitenciárias e nas casas de custódia de jovens infratores, ela diz que são recorrentes as reclamações devido às constantes violações de direitos, sejam dos encarcerados, seja de seus familiares.

“Eu tenho denúncias de mulheres que não aguentam mais terem que passar pela humilhação de uma revista vexatória, de ter que se agachar nua diversas vezes e ainda ser tocada durante as visitas”, relata a ativista do AMPARAR.

A advogada e feminista negra abolicionista, Dina Alves, chama atenção para o número de jovens negros vítimas de homicídios e do encarceramento, e aponta para o racismo institucional do judiciário brasileiro.

“Um sistema judiciário composto majoritariamente por homens, brancos e velhos, produz sistematicamente corpos matáveis nas ruas”, afirma Dina, que é autora da pesquisa ‘Rés negras, juízes brancos: Uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulista’.

Foto: Divulgação Tapera Taperá

Em sua pesquisa, Dina chama atenção justamente para o contraste da aplicação lei nos tribunais, expedida por homens brancos, sofrida por mulheres negras nas penitenciárias superlotadas.

“Pode a vida de uma mulher negra –pobre, carroceira e vendedora de drogas– nas mãos de um juiz homem –branco, classe média alta– nos ajudar a entender o regime de dominação racial presente no sistema de justiça penal no Brasil? (…) Suas experiências podem ser entendidas a partir do que a socióloga norte-americana Julia Sudbury tem chamado de feminizacão da pobreza e da punição, isto é, de como as vulnerabilidades sociais, a criminalização e a punição fazem parte do mesmo processo de subordinação racial das mulheres negras”.

Em sua tese, Dina argumenta que “o sistema penal funciona como instrumento de dominação racial, pois é na sua administração que se manifesta de forma explícita a intersecção dos eixos de vulnerabilidade –delineados por raça, classe e gênero– na produção de categorias de indivíduos puníveis”.

Para a pesquisadora Micol Seigel, apesar do desenvolvimento do sistema carcerário no Brasil e nos EUA ter se dado de formas diferentes, as motivações para o aprisionamento são as mesmas.

“O capital requer a pobreza e por isso tem aumentado o cárcere. Cada vez mais vemos a diminuição de instituições para o desenvolvimento social e a proliferação de instituições para o encarceramento”, aponta Seigel. Além disso, ela crítica a chamada “humanização do cárcere”, em que as prisões passam a ter melhores condições para os presos. “Não precisamos de melhores, precisamos abolir o cárcere. Não tem prisão melhor ou pior, toda prisão é ruim”.

Uma das soluções desenhadas para frear o processo de encarceramento em massa vem com o lançamento da plataforma da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, lançado também pela Pastoral Carcerária.

De acordo com Paulo César Malvezzi Filho, representante da pastoral, a agenda, em si, não traz pontos novos para o debate sobre o encarceramento, mas ela consegue aglutinar as diversas demandas de dezenas de movimentos sociais.

“A agenda consegue colocar em 10 pontos as principais demandas dos movimentos sociais que lutam pelo desencarceramento. Nós sabemos que vitórias isoladas não mudam nada. Só vamos conseguir realmente mudar se todos os pontos forem atendidos”, argumenta Paulo.

Confira os 10 pontos:

1. Suspensão de qualquer verba voltada para a construção de novas unidades prisionais ou de internação

2. Exigência de redução massiva da população prisional e das violências produzidas pela prisão

3. Alterações legislativas para a máxima limitação da aplicação de prisões preventivas

4. Contra a criminalização do uso e do comércio de drogas

5. Redução máxima do sistema penal e retomada da autonomia comunitária para a resolução não-violenta de conflitos

6. Ampliação das Garantias da Lei de Execuções Penais (LEP)

7. Ainda no âmbito da LEP: abertura do cárcere e criação de mecanismos de controle popular

8. Proibição da privatização do sistema prisional

9. Prevenção e Combate à Tortura

10. Desmilitarização das polícias e da sociedade

O documento é ratificado por 43 organizações, movimentos sociais e coletivos. Confira a agenda ponto a ponto.

Debate na íntegra aqui.

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