Foto: rdgdefreitas

Mataram mais uma de nós! Outra pessoa negra, ativista LBGT, foi barbaramente executada no Rio de Janeiro da intervenção militar. Matheus Passareli, Matheusa, Theusa, Theusinha, 21 anos, estudante de artes da UERJ e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage está morta, a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA) da Polícia Civil constatou que Matheusa foi assassinada em uma favela da zona norte do Rio. “Sobre seu corpo, também segundo informações colhidas pela DDPA, ele foi queimado e poucas são as possibilidades de encontrarmos alguma materialidade, além das milhares que a Matheusa deixou em vida e que muito servirão para que possamos ressignificar a realidade brutal que estamos vivendo”, confirmou a irmã, Gabe Passareli, em sua rede social.

CORPO ESTRANHO, PRESENTE

Matheus Passareli saiu de Rio Bonito, interior do RJ, para viver o sonho do ensino superior, junto com a irmã Gabe, foram os primeiros de sua família a entrar numa universidade. Matheus não era invisível, ao contrário disso, era uma presença extraordinária.

Identidade de gênero não binária, não se considerava nem homem, nem mulher. Matheus tinha voz, ousou questionar gênero, classe, raça. Ousou desafiar a heterocisnormatividade, o patriarcado, as fobias todas. Ousou se apresentar ao mundo como o corpo estranho, aquele que simplesmente aceita a natureza de ser quem é, sem se adaptar aos rótulos, sem sucumbir a qualquer prisão. Ousou existir e ser livre.

“Ser corpo estranho é ser cidadão. Na sociedade normativa, acadêmica, branca, colonizada, cisgênera, heterossexual, consumista. Ser corpo estranho é ter tomado consciência da importância de existir, quando desce criança viver no mundo era seguir padrões, em detrimento de sua própria natureza. Detrimento do bem estar de ser quem quiser. Da liberdade de poder habitar. Eu habito o meu corpo para buscar habitar corpos e espaços nunca conhecidos. Utilizo de poesia como forma de sobrevivência sobre a pulsão de ser verdadeiro e estar o tempo inteiro se afirmando.” As palavras de Matheus Passareli precisam continuar ecoando e nos libertando. Devemos isso a ela.

MATHEUSA E MARIELLE, TANTA VIDA!

Corpos estranhos, movendo estruturas. Corpos negros fugidos da senzala. Corpos LGBTs orgulhosos de sua identidade de gênero. Corpos vestidos com a exuberância de suas presenças. A presença de tanta vida!

Em uma semana a polícia concluiu que a morte de Matheus aconteceu por volta das 2h30 de domingo. De acordo com as investigações, Matheus foi morta por integrantes de uma facção criminosa ao entrar no Morro do 18, em Água Santa, na Zona Norte do Rio. Mais de 50 dias depois da bárbara execução de Marielle e Anderson, seguimos sem respostas oficiais. Sabemos que as câmeras do local do assassinato foram desligadas na véspera do crime, mas não sabemos por quem e por quê. Sabemos que os disparos de calibre 9mm não foram realizados por pistola, mas por submetralhadoras HK MP5 de alta precisão, utilizadas por forças de elite da polícia do Rio.

Arte: Ribs

O que não temos dúvida é que aqueles que odeiam pessoas negras, pessoas LGBTs, pessoas empoderadas, odeiam justamente a presença de tanta vida, movendo estruturas e desafiando padrões. O Brasil é o país que mais mata LGBTs em todo o mundo. A expectativa de vida de uma pessoa trans não passa de 35 anos em nosso país. O Brasil é campeão mundial de homicídios por armas de fogo. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registradas 61.619 mortes violentas em 2016, o que equivale ao número de mortes provocadas pela bomba atômica em Nagasaki, no Japão. A letalidade policial cresceu 25,8%. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Número eloquentes demais para qualquer tipo de silêncio. Todo silêncio diante disso é cumplicidade e covardia.

No Rio da intervenção militar, a violência aumentou. O que se verifica é que não só aumentaram quase todos os principais indicadores de violência como as operações policiais e militares realizadas nos primeiros dois meses, envolvendo mais de 40 mil agentes, tiveram resultados pífios em termos de apreensões de armas e provocaram diversas mortes e violações de direitos. Levando em conta o histórico da segurança pública no Rio e os custos estimados da intervenção, o relatório do Observatório da Intervenção conclui que há outras soluções mais adequadas para a crise da segurança no Estado, soluções que passam por uma agenda de reformas bastante óbvia, porém jamais implantada.

Desigualdade, racismo, machismo, LGBTfobia, desesperança, cultura do ódio e da intolerância, matando brasileiros todo dia, sete pessoas por hora. No Brasil do golpe, da democracia interditada, do Estado de Exceção em que estamos mergulhados, a dinâmica é exatamente a mesma: recorde histórico de homicídios, aumento da letalidade policial, dos estupros e feminicídios, dos crimes de ódio. De acordo com o diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, os números registrados no país são, “no mínimo, obscenos”. “A violência se espraiou para todos os estados. Não é exclusividade só de um, apesar de haver uma vítima preferencial”, afirma. A vítima preferencial é jovem e negra, como Matheus Passareli. O que já era ruim, ficou ainda pior.

EU FICO COM A PUREZA DAS PALAVRAS DOS QUE AMAM

Se é verdade que somos o país que mais mata otimistas no mundo, é verdade também que precisamos deixar o pessimismo para dias melhores. Há beleza também na dor e numa das mais belas demonstrações de afeta, o Centro Acadêmico do Instituto de Artes da UERJ passou a se chamar Centro Acadêmico Matheus Passareli do Instituto de Artes da UERJ e divulgou nas redes sociais uma nota:

“Matheus Passareli vem aparecendo em nossos sonhos, percebemos.
Sonhamos com suas roupas coloridas, suas calças largas, seu casaco de pelúcia rosa, suas saias e suas transparências. Com o piercing no rosto e seu cabelo solto. Sonhamos com a presença. Façamos ela presente: o corpo estranho, em todos os lugares; espalhado pelos muros da universidade e pela cidade. Theusa habita os ambientes mais curiosos, mais inexplorados. Nossos corpos e nossas mentes, todas atravessadas pela sua energia, seu carisma, sua vida. Tanta vida.

Via: Despina

Vida de Theusa que vive sempre tão bonita quanto seu rio. Revemos fotos, revemos vídeos. Registros. Memória. O Rio de Janeiro continua lindo e opressor, disse ela em uma zine-relatório de gravura. Escrevera CORPO ESTRANHO na parede do ateliê: todo dia ali é um pedaço de si. Theusa chegou na aula de pintura carregando consigo um saquinho de terra de Rio Bonito, pigmento que se tornou tinta e tinta que se tornou viva. Disse à uma de nós que a vida era isso: nos alimentamos da terra e posteriormente nos tornamos o alimento dela. Pediu a outr@s que falássemos sobre saúde mental, o que nos parece mais urgente do que nunca. Escreveu uma mensagem em um caderno: leia quando precisa. Tantos relatos. Tantos ouvidos.
Não falemos de sua ausência: falemos de sua presença. Da luz de Matheus Passareli Simões Vieira que habita a UERJ desde seu primeiro dia no décimo primeiro andar e que enche o corredor único todos os dias. Invade pelas janelas e pela varanda, enche todas as salas, mesas, cadeiras, projetores, computadores, e que enche cada um que tem o luxo – a sorte – de conhecer Theusa. Cada um que teve o prazer de ver esse corpo, corpo estranho, corpo de “habitante passivo da cidade do interior” como ela mesmo havia se descrito, corpo magro alto negro queer modelo corpo da cidade corpo da universidade alma espírito corpo de Rio Bonito.

É um sonho. É tudo ainda muito estranho. Não fazemos uma nota formal porque nesse momento não há sentido em ser nada além do que somos: somos amigos, amigas, amantes, convivas, colegas de Theusa. Indivíduos unidos em um corpo coletivo. Theusa é parte disso. Dói redigir isso. Dói pensar nisso. Tudo parece tão mais difícil. Mas nas palavras dela mesma, “a dor serve para ser sentida e ser refletida”.
Ao longo dessa semana sentimos muito e refletimos muito. Pensamos e sonhamos Theusa. Vivemos e respiramos Theusa. E de nossa dor e da angústia e da agonia é que sobra a certeza do amor que nutrimos. Falta sentido, faltam respostas, faltam palavras. Mas sobram as reverberações de seu impacto em todos. Nosso amor, nosso alimento.

Matheus Passareli Simões Vieira,
Amamos.
Sempre amaremos.”

NOSSO AMOR, NOSSO ALIMENTO

Os amigos e amantes de Theusa tem razão: nosso amor é nosso alimento. Já sabemos que não podemos confiar na justiça penal da elite branca, nem no poder judiciário racista e classista do Brasil, nem na polícia que mata pobre todo dia. Mas precisamos confiar em nós mesmos, saber que temos uns aos outros, cuidar-nos mais e melhor, nos auto-defendermos do ódio, do neofascimos do mundo contemporâneo. Manas, não morram!

Arte: Daniel Lima

Os tempos são duríssimos, exigem de nós muita reflexão e consciência. A vida exige de nós uma sensibilidade nova, uma ética radicalmente humanista, uma defesa intransigente da vida na diversidade e na pluralidade de comportamentos, ideias, opinões, visões de mundo. Não nos calemos, nem toleremos a intolerância. O que não podemos mais aceitar é a liberdade dos inimigos da liberdade e da vida.

Quantas mais de nós precisarão morrer para que nos unamos numa verdadeira mudança civilizatória? Quantas mais de nós precisarão morrer para que compreendam de uma vez por todas que mexer com uma é mexer com todas? Quantas mais precisarão morrer para que parem de nos matar? Seguir vivos é urgente. Eu sonho em seguir vivo e sonho que Matheus Passareli apareça nos seus sonhos.

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